sábado, 26 de setembro de 2009

Devoção


Aos 16 anos eu ansiava por inconformismo. Buscava nos livros algo que referendasse intelectualmente o meu pendor incipiente pelo discurso de igualitarismo do mundo em vermelho – mundo que se esfacelaria de vez um punhado de anos mais tarde, levando a reboque minhas tolas aspirações. Foi por essa época e com esse objetivo que encontrei Bertolt Brecht. Não o dramaturgo, mas sim o poeta, que acabou camuflado pelo êxito de peças como A Ópera dos Três Vinténs e O Círculo de Giz Caucasiano. Brecht foi uma revelação para aquela mente adolescente. E o curioso é que não foram seus poemas engajados que me pescaram, mas os outros, aqueles poucos que habitam o início e o fim de uma alentada antologia lançada pela Brasiliense, que abarcava os anos de 1913 a 1956, quando ele partiu para seu exílio derradeiro. Esses versos eram arrebatadores, atulhados de lirismo e movidos por um senso de justiça muitas vezes ingênuo – como o meu de então. Passei a escrever como Brecht (o que percebo nitidamente quando releio meus poeminhas de juventude) e falava dele para meus amigos com um entusiasmo religioso.

Engraçado como quase esqueci tudo isso. Durante muito tempo, o máximo que li do livro foi sua lombada, ao me deparar acidentalmente com ele enquanto procurava outro volume na área dedicada à poesia. Até que na semana passada resolvi tirá-lo do abandono e dar uma folheada carinhosa nele – agora com as páginas empalidecidas e empoeiradas – como se fosse um velho álbum de retratos. E por incrível que pareça, consegui enxergar a mim mesmo, aos 16 anos, enquanto consumia as páginas com um misto de espanto e revelação. Novamente, passei ao largo dos poemas com títulos grandiloqüentes – “Quando o Pintor Fala Sobre a Paz Através dos Auto-Falantes”, “Trezentos Cules Assassinados Depõem a uma Internacional”, “Perguntas de um Trabalhador que Lê” – e me fixei no resto:

“Quando ela acabou, foi colocada na terra
Flores nascem, borboletas esvoejam por cima...
Ela, leve, não fez pressão sobre a terra
Quanta dor foi preciso para que ficasse tão leve!”
(“A Minha Mãe”)

Ou

“Agora minha mãe morreu, ontem no fim de tarde,
dia 1º de maio! Não é mais possível arranhá-la com as
unhas.”
(“Canção de Minha Mãe”)

Ou

“Numa noite fria, nessa terra crua
Cada qual leva a morte que é sua.
Cada homem certamente amou a vida
Coberto por palmos de terra batida.”
(“Da Amabilidade do Mundo”)

Mas mesmo entre os poemas ditos revolucionários existem coisas lindas. Como A Despedida, por exemplo:

“Nós nos abraçamos.
Eu toco em tecido rico
Você em tecido pobre.
O abraço é ligeiro
Você vai para um almoço
Atrás de mim estão os carrascos.
Falamos do tempo e de nossa
Permanente amizade.
Todo o resto
Seria amargo demais.”

Reconheço que não há, nem nos trechos acima nem em nenhum outro poema do livro, um grande verso. Brecht não foi um Eliot, muito menos um Pound. Sua poesia não é ourivesaria e nem pretende ser. Mais do que lapidar versos, seu objetivo sempre foi lapidar consciências, e talvez por isso tenha sido tão importante num período crucial da minha vida. Passados mais de vinte anos, deixei de lado conceitos como mais-valia, dialética e materialismo científico (se é que algum dia realmente os levei a sério ou os entendi direito). Mas, felizmente, não deixei de lado a capacidade de me assombrar, de sentir uma navalha cruzando meu coração ao ler um verso como “Sabemos que somos fugazes. E depois nada virá, somente poesia”.

Agora os poemas de Brecht voltarão à estante. Para, quem sabe, daqui a vinte anos eu me deparar com uma nova epifania.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Onde estará Maurício Ribeiro?


Você está dormindo sossegado com sua mulher em seu quarto. Quem sabe sonhando com uma promoção no emprego ou uma praia deserta, sentindo inconscientemente a maciez do travesseiro no rosto e o conforto do colchão king-size recém-comprado suportando bem o peso do seu corpo. Lá pelas cinco e meia da manhã, o dia começando a dar as caras, vocês acordam sobressaltados ao ouvirem a porta do quarto ser arrombada. Em seguida, entram vários homens armados com pistolas e metralhadoras que passam a ameaçá-los violentamente, perguntando por um tal de Maurício Ribeiro. Você conhece algum Maurício Ribeiro? Nem eu. Assim como um casal que mora no Bairro no Paz (uma das muitas favelas de Salvador dominadas pelo narcotráfico) também não conhece. Mas, ao contrário de mim e de você, que acordamos hoje com uma preguiça gostosa e levantamos para trabalhar, esse casal teve realmente a casa e o quarto arrombados por um grupo de homens truculentos, que perguntavam a todo instante sobre o tal Maurício Ribeiro. Com um detalhe: esses homens, devidamente uniformizados, estavam ali numa missão chancelada pela Secretaria de Segurança Pública. Não eram ladrões ou traficantes.

O que aconteceu com esse casal, que não quis se identificar ao dar seu depoimento para a repórter de um jornal local, desvela um pouco – mas só um pouco – da guerra civil de proporção quase africana em que vivemos. Uma guerra na qual as trincheiras são os amontoados de casas com tijolos aparentes que insistem em aparecer em todos os cantos da cidade. "Nunca fomos assaltados no bairro e somos vítimas de uma violência cometida pela própria polícia", desabafa a moça que teve a casa invadida, dando a deixa para a gente se perguntar: é justo viver assim? Ou melhor, é humano viver assim? Que inversão de valores é capaz de produzir tamanho disparate? Mesmo levando em conta que policiais vivem um cotidiano permeado por situações-limite, são mal pagos, mal aparelhados, mal treinados e malvistos pela população, como entender um procedimento assim, ainda mais em se tratando de uma regra, não de uma exceção?

Quando isso acontece os valores se pulverizam. Se aos olhos de um menino da favela o policial é o bandido, então sua visão de mundo se distorce, e não há senso de justiça plausível, a não ser o da bala disparada, não importando em qual corpo ela venha a se instalar. Numa realidade assim, a tragédia de ser pobre não é ter que se virar diariamente para pagar a conta do mercadinho, arrumar emprego ou conseguir um teto. É ter que negar o tempo todo, para si mesmo e para os outros, que ele não é um bandido. Pobreza não é sinônimo de má índole, embora, num lugar onde elas andam geograficamente irmanadas, seja cômodo pensar assim. Ao menos facilita a vida de quem vai invadir a favela à procura de traficantes. Enfim, é nessa cidade que vivemos. Uma cidade que se assemelha a um gigantesco depósito de pólvora a céu aberto. E – basta lembrar do que aconteceu em Santo André na manhã de ontem – a gente sabe bem o que pode acontecer quando se estoca muita pólvora num só lugar.

domingo, 20 de setembro de 2009

Devastação


O que se vê em Lóki é basicamente uma trajetória clássica de ascensão e derrocada, seguida de um tardio esboço de redenção. Mas o que mais me impressionou no documentário de Paulo Henrique Fontenelle, a que só fui assistir ontem, foi a forma brutal e abrupta com que a juventude se viu extirpada da vida de Arnaldo Baptista. As imagens são dilacerantes: primeiro o garoto expansivo, brincalhão e curioso, novo e ingênuo demais para enfrentar as engrenagens que movem o meio musical e incapaz de abarcar as contradições da época em que vivia – no caso, a de um país assolado pela truculência. E depois, quando o fim do relacionamento com Rita Lee e o mergulho estúpido no ácido lisérgico fulminaram a sua inocência, um rapaz ainda novo demais, só que agora devastado pela tristeza e tragado pela insanidade.
A cisão entre esses dois Arnaldos, separados por um curtíssimo espaço de tempo (embora semelhante a uma pequena eternidade), é o cerne do filme. Ninguém prossegue incólume após perder a juventude de uma hora para outra. Precisamos de um processo lento e contínuo, no qual as experiências dos primeiros anos vão sendo sedimentadas pouco a pouco, nos permitindo abraçar com clareza e alguma resignação as desilusões, perdas e descobertas que acompanham a chegada da maturidade. No seu caso, a perda instantânea da juventude ainda o privou da pessoa que amava e, de quebra, da lucidez, num processo que talvez se assemelhe à sensação de ficar paralítico ou cego após um acidente. É muito, enfim. Sua obra – que considero superestimada – reflete dramaticamente essa mudança. Aquelas canções ao piano, de uma tristeza comovente, deixam evidente que o passado não tinha se tornado passado. Estava ali a assombrá-lo permanentemente, como um sonho que não acaba nem arrefece. É possível que o passar dos anos – a queda, o coma e em seguida a abnegação de uma pessoa capaz de amá-lo incondicionalmente – tenha acabado por formar uma fina camada de cicatrização. Mas a ferida está lá. Basta olhar para o seu rosto e ouvir a sua voz para perceber isso.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Eu não te amo, meu Brasil


O nacionalismo é um conceito que não me agrada. Não compartilho da exaltação à nossa pretensa superioridade nos âmbitos esportivo, cultural ou de belezas naturais, tão disseminada na nossa classe média, e sempre tenho um pé atrás com manifestações tolas e difusas de patriotismo. Afinal, a gente sabe muito bem até onde pode ir uma nação que pratica o ufanismo e a xenofobia. Dois textos que li recentemente no blog de um amigo (http://verbotransitivo.blogspot.com) me fizeram pensar um pouco nessa espécie de nacionalismo que uma grande parcela dos brasileiros faz questão de explicitar em certas ocasiões. Um deles condena a torcida burra para que a seleção da Argentina fique de fora da próxima Copa do Mundo, o que pode realmente acontecer. Criamos, sobretudo ao longo dos últimos 20 anos, uma percepção distorcida sobre o caráter e a personalidade dos nossos vizinhos – invariavelmente estereotipados como malandros, milongueiros e desleais –, acentuada pela forma como o principal narrador da principal rede de televisão do país lança mão de um maniqueísmo imbecil para forjar uma pretensa rivalidade entre nós e eles. Uma bobagem, em suma. Quando estive em Buenos Aires, os argentinos me pareceram corteses e simpáticos, inclusive quando falavam de futebol, que eles entendem e praticam tão bem quanto nós. Mas é aquela velha história: entre o fato e a lenda, imprima-se a lenda.
O outro texto que li reproduz e analisa a coluna do jornalista Mauricio Stycer no Portal do iG (http://colunistas.ig.com.br/mauriciostycer/), e versa sobre o comportamento do público num show, em São Paulo, da banda Beirut, que havia feito uma versão descontraída da musica O Leãozinho, de Caetano Veloso. Pelo pouco que ouvi, essa banda me parece um sopro de vitalidade em meio ao modorrento cenário pop contemporâneo, com uma mistura inusitada e divertida de influências musicais do Leste Europeu e do México. Mas sabe o que o público queria ouvir de qualquer jeito, e pedia o tempo todo para que a banda tocasse? O Leãozinho, é claro. Com a palavra, Stycer: “Não canso de me espantar com esse comportamento. Por que alguém vai a um show de um artista estrangeiro e passa 60 minutos pedindo para ele cantar 'Leãozinho'? Por que o público fica tão feliz de ver o músico repetir algumas palavras que decorou em português? Qual é a graça de ver um estrangeiro 'abraçar' a bandeira do Brasil?
O próprio Ricardo, autor do blog, prossegue: “O que dizer de um país que precisa ver um gringo enaltecer contra a vontade a arte local? Não é nem necessidade, é compulsão.”
Acrescento que esse comportamento revela, por outro lado, uma escassez tremenda de espelhos. Não temos em quem nos mirar, e talvez por isso sentimos essa necessidade de enaltecer o que teoricamente temos de mais valoroso. Mas por que precisamos manifestar toda essa paixão por um país que nos dá tão pouco? Não sinto qualquer orgulho quando vejo um esportista brasileiro ganhar uma medalha ou um torneio, seja no vôlei de praia, no tênis ou no atletismo, embora não desmereça essas conquistas. A verdade é que pouco me importa que nação aquele atleta representa. Outro dia, a revista Veja estampou a seguinte manchete para falar da conquista do nadador César Cielo no mundial de natação: “Enfim, um herói”. Um vencedor? Sem dúvida. Um candidato a ídolo? Provavelmente. Mas herói? Estamos tão mal assim? Ou estamos apenas nos mirando nos espelhos errados? Pensando bem, temos, sim, heróis, mas eles são outros. Heróis trágicos, como um Euclides da Cunha, por exemplo, que se embrenhou no Brasil profundo para tentar entendê-lo, deixando, mesmo que precocemente, uma obra maiúscula. Ou heróis anônimos, como um taxista que presenciou um rapaz ser assassinado por uma BMW que avançou o sinal vermelho a 150 km/h e foi atrás dela, anotando a placa e denunciando o fato à polícia, que prendeu e soltou o assassino após o pagamento da fiança. A justificativa do taxista: “Fiz o que fiz para poder continuar vivendo sem ter do que me envergonhar perante meus três filhos”. Simples assim. Como ele, tem muita gente de carne, ossos, nervos e dignidade praticando atos silenciosos de heroísmo país afora. Mas esses são espelhos turvos, opacos, sem brilho, e não queremos nos ver refletidos neles.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Mergulho na zona cinzenta



“Eu tinha esperança de que aquele marco de estupidez fosse o fundo do poço em termos de violência, e que se tomasse consciência de que existem outros caminhos. O que a gente vê é que foi um marco para a banalização da violência.”

Ivan Fairbanks Barbosa, pai de um dos brasileiros mortos no ataque ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001.


Três anos antes dos atentados que destruíram o World Trade Center, eu subi ao topo de uma daquelas torres, não lembro agora qual. Soprava um vento frio de outono e a visibilidade era um pouco turva, mas dava para ver, descortinados à minha frente, o mar de prédios de Manhattan lá embaixo, como numa maquete, e as pontes que ligam a ilha ao Brooklyn e ao continente. Era uma construção maciça, retangular, sem a elegância esguia do Empire State, mas mesmo assim um portento de aço, vidro e concreto. Aquilo definitivamente não tinha sido feito para cair. Naqueles dias, não existia medo em Nova York. Afinal, não tínhamos chegado ainda ao novo século e vivíamos num limbo pós-século 20, encerrado prematuramente em 1991 com o esfacelamento da União Soviética, de acordo com Eric Hobsbawm. Nada, nem as apocalípticas e hiper-realistas previsões dos filmes-catástrofe de Roland Emmerich, poderia levar a crer que o mundo entraria de modo tão brutal no século 21, como de fato entrou no dia 11 de setembro de 2001.

Talvez por tudo isso – pelo inesperado de um ato terrorista daquelas proporções, pela solidez inconteste (embora ilusória) daqueles prédios, pela imagem aterradora dos aviões mergulhando nos paredões –, esses atentados até hoje provocam tamanha perplexidade. Passados oito anos, como reprimir o pasmo frente à nova geopolítica da barbárie que se desenhou para além da fumaça das torres desabando e concebendo um imenso caixão coletivo, onde foram enterrados milhares de seres humanos? Lembro bem da minha reação ao ver as primeiras imagens, que pareciam uma animação grosseira em 3D: “É claro que os prédios não caíram, aqueles prédios não caem”. Ainda hoje penso nas pessoas atemorizadas dentro dos aviões que sobrevoavam Manhattan. Algumas até devem ter pensado: “Bem, eles vão descer no JFK ou em Newark e exigir alguma coisa em troca de nossa libertação. Mais ou cedo ou mais tarde isso termina”.

Numa entrevista a que assisti hoje na TV UOL, o diretor teatral Gerald Thomas, que presenciou os ataques, define a Nova York pós-atentados como “uma cidade amputada”. Não voltei mais lá, infelizmente, mas acredito que seja uma metáfora adequada. Impossível para os habitantes não sentir na carne aquela perda, algo muito próximo, talvez, do incômodo que os amputados sentem na perna que não têm mais. E o que parecia o fundo do poço, como imaginou Ivan Fairbanks Barbosa no depoimento reproduzido no início deste texto (também retirado da matéria da TV UOL), se constituiu na aurora de uma nova era. Um período de desrazão, estultice e violência exacerbada de parte a parte. Firmou-se assim, a partir de setembro de 2001, um suposto embate entre civilização e barbárie, que mobilizou intelectuais, escritores, políticos e outras personalidades, cada um marcando terreno com sua urina ideológica.

O problema é que neste caso, ao contrário da contenda envolvendo Eixo e Aliados na Segunda Guerra, não existe um lado escuro da força. Civilização e barbárie não ocupam lados opostos, até porque há mais semelhanças que diferenças entre as ações de George W. Bush e as de Osama Bin Laden. Ambos freqüentam uma zona cinzenta habitada por interesses escusos, fanatismo, paranóia, desprezo pelo outro e exploração da ignorância. Um território refratário a boas intenções ou atos heróicos, habitado exclusivamente pela covardia.

A conseqüência, de qualquer forma, é que nunca ocidente e oriente estiveram em planos tão opostos. Nem mesmo na Guerra Fria havia menosprezo mútuo tão intenso. Os americanos odiavam os comunistas russos – e vice-versa – por serem comunistas, não por serem russos. Hoje o ódio recíproco é antes de tudo étnico. Uma categoria de ódio muito mais difícil de ser extirpada dos corações e mentes envolvidos. É fato, também, que os norte-americanos reagiram com uma ira que beirou a insanidade, apesar de terem razões justas, como haviam feito na Segunda Guerra com os japoneses (ninguém me convence de que as bombas de Hiroshima e Nagasaki foram uma decisão militar racional para pôr fim à guerra e evitar mais mortes. Aquilo foi uma vingança desproporcional ao ataque de Pearl Harbor).

O chato de tudo isso é que o mundo ficou mais perigoso. Viajar para a Europa e os EUA virou um suplício. Ser estrangeiro nesses lugares também, principalmente se você carrega feições ou sobrenomes suspeitos. Se já eram quase insuportáveis no passado, países como Iraque, Irã, Israel, Afeganistão e Líbano ficaram ainda piores, e não há sinal de melhora no horizonte. Um alento, se é que se pode chamar assim, é que o ocidente parece disposto a dialogar, afinal Bush e sua corja foram tardiamente banidos da Casa Branca e no lugar deles entrou um homem ao que parece decente e de pensamento pluralista. No oriente, porém, o sectarismo belicista e a intolerância permanecem. São chagas milenares, recentemente despertadas, e não vai ser fácil encontrar a canção de ninar que as faça dormir de novo.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Sobre homens e trilobites


Certa vez, li numa matéria que se fosse possível condensar a idade da Terra – aproximadamente 4,5 bilhões de anos – em apenas um dia, a espécie humana teria direito a quatro minutos de existência. Ou seja, nós surgimos como espécie só nos quatro últimos minutos de vida da Terra. Mais precisamente, às 23h56. Antes disso, nada. Somente répteis gigantes (os dinossauros teriam vivido cerca de uma hora de todo esse tempo), preguiças enormes, tubarões e vegetação maciça. E mesmo assim só lá no fim da noite, se não levarmos em conta os trilobites e microorganismos – nossos tataravós – que, com seu pioneirismo, deram início a tudo isso que está aí. Na maior parte do tempo, o planeta foi só uma cobaia de si mesmo: eras glaciais, vulcões em profusão, aquecimentos globais poderosos, maremotos e tempestades de meteoritos que castigavam nossa superfície. Em vez dos cinco continentes, um só: Pangéia. Em vez de cidades, trânsito e poluição, paisagens desoladas lentamente substituídas por belezas naturais arrebatadoras.
Mas onde quero chegar com esse papo de quem acabou de ler uma Superinteressante? Não sei. Talvez a uma resposta para questionamentos bem mais triviais e menos grandiosos que a idade da Terra ou a origem da vida. É possível, por exemplo, que o nosso – relativamente – pouco tempo no planeta explique em parte o que fazemos com ele. Ou o que fazemos às outras espécies, animais e vegetais. Ou, principalmente, o que fazemos a nós mesmos. Com um pouco de curiosidade e um tantinho mais de educação formal, é possível chegar às informações que elenquei acima. Informações superficiais, sem dúvida, mas suficientes para permitir que nos confrontemos com o abismo da nossa própria existência, com todas as suas limitações e contradições. Por que então optamos, muitas vezes de forma deliberada, pela ignorância? Somos seres complexos, biologicamente e intelectualmente falando, mas optamos por nos comportar como... trilobites.
É provável que a maciça maioria da população humana desconheça quase por completo o fato de que, geologicamente falando, estamos há pouquíssimo tempo no planeta. Ou de que somos fruto do acaso ou mesmo de que morremos como formigas, num simples estalo, sem que até hoje algum cientista tenha conseguido reanimar sequer o mais primitivo dos animais quando ele suspira pela última vez. O tamanho da nossa insignificância ainda é imensurável para muita gente. Erramos como nômades e nos reproduzimos como coelhos, reféns de seitas difusas, crendo por comodismo na possibilidade impalpável da vida eterna, aguardando uma redenção que não chega. E, talvez por acreditarmos nessa redenção, permanecemos confortavelmente alheios ao que nos cerca. Não sabemos, para além dos clichês, o que significa aquecimento global ou efeito estufa, nem sequer entendemos por que tanta celeuma por causa de uma florestinha dizimada ou um macaquinho extinto.
Se não me engano, foi Mario Quintana quem escreveu uma anedota genial, na qual dizia: o homem vem do macaco, e pelo comportamento de certos homens, percebe-se que alguns ainda estão vindo. Involuntariamente, é possível que ele tenha encontrado a chave que desvenda o nosso percurso. Ainda estamos nos desvencilhando do homem primitivo que persiste em nós, e isso leva tempo. Somos uma espécie em franca evolução biológica, embora nada indique que exista também uma evolução intelectual, moral e comportamental em curso. Pode ser que daqui a alguns séculos não tenhamos mais apêndice, mas é justo supor que permaneça em nós o instinto atávico de destruir. É possível que ele faça parte do nosso código genético, como o pendor por ruminar faz parte dos bois e a predileção por dilacerar faz parte dos felinos. Sendo assim, os poucos que reprovam a destruição em massa seriam na verdade genes recessivos. Uma pequena multidão de albinos e canhotos a postergar, com seus discursos ecochatos, a nossa missão primeva na Terra: tornar o planeta tão inabitável quanto era há 4,5 bilhões de anos.