sábado, 24 de outubro de 2009

Cem páginas de solidão


Escrever é uma forma de renúncia. Com raras exceções, um autor necessita – além de talento, concentração e disposição para o trabalho – da mais vasta solidão para se embrenhar nos desvãos da própria mente e voltar à tona com quilos de palavras meticulosamente enfileiradas. Como numa pesca submarina, ou melhor, como num sono profundo, no qual a permanência prolongada na zona abissal do inconsciente é responsável pelos sonhos e pesadelos mais complexos e devastadores. Um mundo arrebatador, sem dúvida, mas a que custo? O que a solidão oferece ela tira em dobro, e sabemos que a solidão vai mudando de sabor e textura à medida que envelhecemos. Num dos meus momentos de maior solidão – justamente o momento em que cheguei mais próximo de me tornar um escritor – pus na boca do personagem de um romance inacabado a seguinte observação: “Solidão é uma praga. Quando a gente é jovem, ainda acha que ela tem um sabor agridoce. A partir dos trinta a solidão se torna amarga. Aos sessenta, que é o meu caso, o gosto é pior que o de cocô”. A frase é dita por um escritor bissexto e recluso ao principal personagem do livro, um jovem jornalista que trabalha na editoria de cultura do maior jornal de São Paulo e aspira se tornar um novo Scott Fitzgerald.
Esse livro, que se chama Puppy, começou a ser escrito entre agosto e outubro de 2002, e nunca consegui terminá-lo. Ele tomou forma quando passei quatro meses em Fortaleza, trabalhando na campanha política de um dos candidatos a governador do Ceará. Fui sozinho, deixando minha mulher e minha filha em Salvador, e nos últimos dois meses praticamente não havia mais trabalho. Tinha que ficar de sobreaviso caso meus serviços – era uma espécie de repórter investigativo que fuçava os podres dos adversários – fossem novamente requisitados, o que se tornou cada vez mais raro. Sozinho num flat que ficava de frente para a praia de Mucuripe, no 12º andar, eu passei a me dedicar à construção do Puppy (o título é uma homenagem ao barzinho que considerava meu paraíso particular quando morava em São Paulo, e onde tinha cadeira cativa e uma cerveja invariavelmente gelada à minha frente). Tinha basicamente tudo de que precisava em mãos para me tornar eu mesmo um novo Scott Fitzgerald (exceto o seu talento, obviamente): notebook, cigarros – que comprava a qualquer hora da madrugada na barraca de praia à frente do edifício –, uísque e uma solidão avassaladora, acentuada pela saudade. Costumava começar lá pelas 10 da noite e trabalhava até cinco, seis da manhã. Uma vez fui até as onze horas sem parar. Posso dizer que era uma experiência agradável ficar na varanda escrevendo e de vez em quando desviar a vista para observar os madrugadores caminhando no calçadão, o céu se impregnar pouco a pouco das cores do novo dia e as velas do Mucuripe, ancoradas ali na frente, protegidas por uma barra, saírem para pescar, levando suas mágoas para as águas fundas do mar. Em dois meses, cheguei às cento e dez páginas do Puppy, um romance de arquitetura um pouquinho complicada, pois precisava dar conta de quatro personagens, todos eles com voz em terceira pessoa, mesclando fluxos de consciência com sutis observações do narrador. Em maior ou menor medida, Matheus, Renato, Bóris e Daniel eram inspirados em colegas da faculdade de jornalismo da Cásper Líbero e, principalmente, em mim mesmo. Apesar de ficção, havia muito conteúdo autobiográfico ali, o que representava um desafio adicional: até onde a ficção deveria ser sobrepujada pela realidade? A tendência era invariavelmente apelar para a narrativa memorialística, deixando de lado a criação propriamente dita.
Mas, enfim, o fato é que passados os dias em Fortaleza, voltei ao convívio da minha família e consegui retomar o trabalho no jornal, de onde só fui sair em 2007, e um ano depois entrei na agência de propaganda onde estou hoje. Infelizmente, não consegui retomar o Puppy, por mais que tenha escrito um ou dois capítulos, depois perdidos quando meu computador quebrou. Algo ficou pelo caminho, e não me senti disposto a voltar aos dias de solidão. Seria um custo alto demais a pagar pela conclusão do romance, que está aqui arquivado há sete anos, esperando ser retomado. Quem sabe um dia, quando minha filha deixar de entrar no meu gabinete para conversar comigo e interromper meus textos ou minha leitura, me enchendo de uma alegria terna e silenciosa, eu volte e finalmente o conclua. De vez em quando, releio alguns trechos, mexo em outros e no geral aprecio o que tem ali, embora saiba que se trata ainda de um trabalho em progresso, um prédio sem acabamento e com tijolos faltando, muito longe da entrega das chaves.

2 comentários:

João Luiz Peçanha Couto disse...

De fato a solidão é fundamental para o exercício da escrita, Paulo. Assim já pontificava um moço chamado Blanchot, lá pelos idos de 1950. Essa solidão é a responsável por possibilitar a construção daquele universo que a literatura nos permite que seja adentrado. Se isso consola, lá vai: tenho três projetos no mesmo pé que o seu Puppy.
Grande abraço!

Paulo Sales disse...

É, João, a solidão é fundamental. O problema é que seu custo é alto demais, e não me sinto disposto a pagar tão caro. Mas, quem sabe, um dia terminaremos nossos livros inacabados.
Grande abraço.