sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Seres extraordinários


Há um vácuo na minha formação que me impede de compreender em sua totalidade algumas notícias que me atingem como punhaladas ao abrir um jornal ou acessar a internet. Nunca li nenhuma obra de Freud, Jung, Lacan ou algum outro teórico essencial da psicologia e de sua corrente principal, a psicanálise. Mas é provável que, mesmo conhecendo a fundo conceitos como superego ou Complexo de Édipo, restasse em mim apenas o pasmo ignorante de um leigo, o espanto primordial de um idiota ao saber que um pai se arremessou junto com o filho de dois anos do alto de um prédio de 18 andares, por não aceitar o fim do relacionamento com a mãe do garoto. Ou que um homem-bomba deu cabo de si mesmo e de dezenas de pessoas, todas elas do seu próprio povo e muitas delas crianças e mulheres, num mercado lotado no norte do Paquistão.

São episódios completamente diferentes, com pretextos radicalmente diversos. Mas ambos encerram uma questão que vai além da barbárie em estado bruto. Afinal, seus protagonistas não apenas mataram, mas também morreram intencionalmente na ação. Como entender isso? Que motivações são capazes de promover atitudes tão brutais? A meu ver, fanatismo ou desespero não dão conta dessas questões. Mais do que a banalização dos assassinatos, estamos assistindo também à banalização dos suicídios. Mata-se e morre-se pelos motivos mais esdrúxulos, sobretudo os ligados a uma radical distorção do conceito de fé ou à incapacidade de se viver sem aquele que se ama.

Na condição de um semi-analfabeto em psicologia, recorro então aos romances, que ao longo dos séculos nos ensinaram muito sobre a alma humana, e logo me vêm à mente dois livros que não falam propriamente sobre suicidas assassinos, mas desvelam em parte a psique do criminoso. Para Raskolnikov, personagem principal de Crime e Castigo, existem duas categorias de seres humanos: os ordinários, que devem respeitar as leis e viver na obediência, e os extraordinários, ou gênios da raça, aqueles que podem até cometer um crime se sua consciência assim determinar. Alçado por si mesmo à segunda categoria, ele comete o seu crime, e passa o resto dos dias corroído pelo remorso (daí que, mais do que propriamente um romance sobre crime ou castigo, Dostoievski criou um romance sobre a culpa).

Albert Camus também se embrenha nos desvãos escuros de um assassino, Mersault, cuja absoluta indiferença em relação à própria existência e a tudo que a rodeia acaba por levá-lo à pena de morte. Em O Estrangeiro, o ato de matar também é cometido quase como num surto, num momento de catarse, embora não exista a perda completa da lucidez. Tanto Raskolnikov quanto Mersault sabiam exatamente o que estavam fazendo, por mais que a intensidade da luz do sol ou uma teoria cretina de superioridade intelectual pudesse isentá-los de responsabilidade.

É possível fazer um paralelo entre a teoria de Raskolnikov e os homens-bombas arregimentados pelo fundamentalismo islâmico (embora neste último caso estejamos diante de crimes sem castigo, já que o criminoso vai embora junto com as vítimas). Em suas cabeças carcomidas pelo fanatismo, não seriam eles seres extraordinários, dotados de um poder celestial que os habilita a matar centenas de congêneres ordinários em função de uma causa maior? É provável que sim. Mas que causa é essa? Que fim justifica meios tão abjetos? Sinceramente, não sei. O próprio Camus disse que o suicídio é a grande questão filosófica do nosso tempo, ponderando que “decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia”. É uma teoria válida, obviamente, mas possivelmente defasada. Talvez a grande questão filosófica nestes tempos sombrios em que vivemos seja decidir não apenas se a própria vida, mas também – e principalmente – a vida alheia merece ser vivida. Em muitos casos, um suicídio é compreensível: a perda de quem amamos muito, uma doença terminal que nos fará sofrer fisicamente, um surto depressivo. Já um suicídio acompanhado de um ou muitos homicídios é injustificável, não só moralmente, mas também psicologicamente. A não ser que os livros que nunca li tenham uma resposta para tanta estupidez.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Flores em vida


Numa de suas muitas canções repletas de singela sabedoria, Nelson Cavaquinho recusava de forma categórica homenagens póstumas. E pedia: “Me dê as flores em vida, um carinho, a mão amiga, para aliviar meus ais. Depois que eu me chamar saudade, não preciso de vaidade, quero preces e nada mais”. Lembrei dessa canção de Cavaquinho ao rever ontem à noite os minutos finais de Buena Vista Social Club, filme que recupera do oblívio um grupo de artistas de talento e trajetória singulares. É comovente observar aqueles velhinhos cubanos alcançando a glória tardia no Carnegie Hall, em Nova York, após décadas de ostracismo e subempregos, durante as quais guardaram em suas mentes e gavetas um apogeu perdido.
Vê-los ali tocando, se divertindo e se emocionando nos faz pensar na montanha russa que os arrebatou num período de suas vidas em que já se preparavam para deixar o mundo anonimamente, com a cabeça no travesseiro e o terno surrado devidamente engomado. É fato que Ibrahim Ferrer, Ruben González, Compay Segundo e Pio Leyva, entre outros dos quais não me recordo os nomes, já estão mortos. Mas é fato, também, que ao contrário da maioria de nós, anônimos errantes deste planeta, eles receberam as flores em vida. Basta prestar atenção no semblante silencioso de Ibrahim Ferrer, ao contemplar profundamente comovido a platéia do Carnegie Hall, para vislumbrar ali uma epifania, e provavelmente uma valorosa sensação de missão cumprida.
É bem provável que, se não fosse por iniciativa de Wim Wenders e Ry Cooder, todos eles teriam permanecido obscuros, lembrados apenas por alguns sobreviventes de uma geração que conheceu a Cuba pré-revolucionária, com suas casas de espetáculos, cassinos e clubes de bailes. É como se tivessem vivido todo esse tempo apenas aguardando inconscientemente a chegada de Cooder e seu filho à ilha, como uma tumba egípcia (a comparação é de mau gosto, reconheço, mas adequada neste caso) escondida numa pirâmide aguarda milênios a chegada de um arqueólogo. Um acaso monumental em suma, que permitiu a eles imprimir, merecidamente, as digitais na máquina do mundo. O resultado desse acaso é que hoje você se depara com o rosto sorridente e maroto de Compay em qualquer megastore que se preze, assim como encontra milhares de referências a Ferrer no Google ou pode baixar discos de González em sites de compartilhamento de arquivos.
E agora, enquanto penso nos velhinhos do Buena Vista, acabo pensando também nos artistas sem nome – homens e mulheres, vivos ou mortos – que não conseguiram ser pinçados da massa amorfa que compõe a escória humana. Por que uns e não outros? Não duvido que para cada Compay Segundo ou Ibrahim Ferrer há muitos tipos igualmente talentosos perambulando por vielas de cidades como Havana, Kinshasa, Lisboa, Pequim ou Rio de Janeiro. E então volto a pensar em Cavaquinho, que morreu pobre e bêbado, mas famoso. E também em Cartola, redescoberto já velho enquanto trabalhava como um improvável flanelinha no centro do Rio. Enfim, fico aqui pensando em toda essa gente que, por um espasmo do destino, alcançou a eternidade a despeito de todo e qualquer prognóstico contrário.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Disparates


Às vezes me chega às mãos alguma edição passada da revista Veja, e costumo folheá-la de trás para frente, para conferir as críticas de cinema e uma ou outra matéria sobre literatura. No meio delas, encontro as colunas de Diogo Mainardi. Habitualmente, seu texto me provoca um ligeiro sorriso ou um pouco de tédio. Mas de vez em quando me espanta a maneira como ele – assim como outro colunista, Reinaldo Azevedo – personifica o reacionarismo sem escrúpulos da publicação para a qual escreve. Há muito tempo a Veja deixou de ser uma revista séria. Basta dar uma olhada nas pautas para entrever, entre as matérias culturais ou comportamentais, um veículo para desancar desafetos ou desqualificar tudo e todos que estejam direta ou indiretamente relacionados ao que se convencionou chamar de esquerda. Não que a esquerda seja um território habitado por vestais (não é) ou que as ideologias a ela ligadas sejam uma solução para as mazelas da civilização (o comunismo provou em definitivo que não são). E, como contraponto, vale lembrar que uma revista como a Caros Amigos, situada no espectro oposto da Veja, utiliza os mesmos artifícios e atinge os mesmos resultados risíveis.

Mas não queria falar da Veja. Voltando a Mainardi, li outro dia uma coluna antiga, de julho, na qual ele falava das impressões da escritora irlandesa Edna O’Brien sobre a sua viagem a Paraty para participar da Flip, onde participou de encontros com outros autores, incluindo aí Chico Buarque e Milton Hatoum. Edna detestou os dois, achou-os arrogantes e com pouca erudição. Daí Mainardi conclui: “Chico Buarque é o buzinador das letras: fon-fon. Ele está para a literatura assim como Dilma Rousseff está para as teses de mestrado. Ou assim como José Sarney está para Agaciel Maia”. Nunca li um livro de Chico Buarque. Das adaptações de seus romances para o cinema, vi apenas Estorvo, de Ruy Guerra, um filme que beira o insuportável. Não acredito que seja um grande escritor, e não pretendo conferir, embora pense que é impossível seccionar em compartimentos estanques a obra de um artista, mesmo que atue em frentes opostas (ou seriam complementares?). Por tudo isso, penso cá comigo: não seria um exagero tecer comparações tão esdrúxulas para afirmar que Chico Buarque é um embuste, uma fraude sem substância a enganar milhares de leitores ingênuos? Claro que é um exagero, que por sua vez embute uma necessidade imperiosa de nadar contra a maré, de desafinar o coro dos contentes. Mas o que dizer de um articulista que define como “basbaque” o estilo de Luis Fernando Verissimo? Mainardi é um dos muitos herdeiros de Paulo Francis que parecem não ter apreendido a essência do mestre. Já escrevi aqui no blog que Francis entrou para a história da imprensa brasileira não pela tendência a emitir de tempos em tempos opiniões descabidas e preconceituosas que minavam sua credibilidade. Mas sim por ter sido capaz de abordar temas espinhosos com um coloquialismo e uma autenticidade sedutores, além de ter escrito dois livros de memórias magníficos (O Afeto que se Encerra e Trinta Anos Esta Noite).

Mainardi tem de Francis o seu pior. Polemiza usando como armas argumentos imprecisos e sem fundamento, apesar da sua inegável erudição. É que talvez lhe falte o talento que sobrava no outro. Ironia sem substância acaba se resumindo a leviandade. Tenho em casa um de seus romances, Malthus, que li até a metade. Fraco. De qualquer modo, o que me incomoda em seus artigos não é o que ele publica, e sim o discurso das entrelinhas. Mainardi, me parece, não quer atingir Chico Buarque por aquilo que ele escreve, mas pelo que pensa: o autor de A Banda defende entre outras coisas o regime castrista de Cuba – algo abominável para Mainardi, e para mim também. Daí a chamá-lo de “buzinador das letras”? Para quem cresceu ouvindo Chico cantar – e ainda criança descortinava, mesmo que superficialmente, os sentimentos dilacerantes ocultos nos versos de Pedaço de Mim e Angélica –, esse epíteto soa como um mero disparate.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Das barricadas ao puritanismo



Outro dia, como sempre gosto de fazer nos finais de noite, fiquei conversando com minha filha até ela dormir. Falávamos, entre outras coisas, dos seus amigos e amigas de escola, e ela me contou, usando suas palavras, que há um muro invisível separando meninos e meninas, com algumas exceções. Sua justificativa para isso foi certeira: “Os meninos só fazem correr, brigar e xingar”. É claro que nos próximos anos os hormônios em profusão e as mudanças de comportamento farão com que os dois sexos, para meu desespero de pai, venham a se aproximar. Mas a afirmação de minha filha deixa claro – e aí entra uma questão bem mais grave do que um tolo ciúme paterno – que há uma mudança em curso no comportamento dos meninos e adolescentes brasileiros.
O ambiente juvenil é e sempre foi violento, um lugar hostil para almas sensíveis ou corpos franzinos, e não é fácil sobreviver a ele sem seqüelas. Mas nunca vi tamanha agressividade como tenho observado nos últimos tempos. Algo que se pode confirmar numa pesquisa recente, na qual, se não me engano, 87% das adolescentes entrevistadas relataram ter sofrido agressões de seus namorados, que vão de tapas no rosto a título de “brincadeira” até socos movidos por ciúme. É um número por si só estarrecedor, mas que desvela problemas ainda mais sérios, como desagregação familiar causada por alcoolismo, violência doméstica, abusos sexuais e aniquilamento sistemático de preceitos éticos e morais básicos.
O resultado de tudo isso é uma terra devastada, onde um jovem mata a ex-namorada de 15 anos com um tiro na cabeça. A justificativa? Não conseguia viver sem ela. Ou onde um grupo de rapazes voltando da farra espanca uma moça num ponto de ônibus por diversão. A justificativa? Pensavam que era “uma puta”. E desde quando uma puta merece ou precisa ser espancada? Só um cenário assim poderia desaguar naquele episódio da garota que, por chegar para a aula na faculdade usando um microvestido, foi agredida, xingada e quase estuprada por 700 alunos ensandecidos. A justificativa? A roupa não era adequada. E qual roupa seria adequada? Uma burca? De onde veio esse neo-puritanismo repentino praticado por gente com uma idade que, em outros tempos, levantava barricadas, saía as ruas contra ditaduras e queria mudar o mundo? Ao que parece, a herança dos anos 60 foi totalmente pulverizada. Por onde andam Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre, Allen Ginsberg, Bob Dylan e aquele bando de ripongas pelados que praticava o amor livre e pregava a igualdade entre os sexos? Sumiram sem deixar marcas no nosso país tropical abençoado por Deus. Ou seja: voamos sem escalas do conservadorismo dos anos 50 para o puritanismo estulto e sexista dos anos 2000. E, como sempre, não aprendemos nada com o passado.