sábado, 19 de dezembro de 2009

Escalada


A persistência dos alpinistas sempre me intrigou. O que leva um sujeito a se dependurar durante dias montanha acima para chegar ao topo, e só então se deixar impregnar do prazer efêmero de descortinar o mundo como um rei anônimo? Praticar alpinismo é flertar o tempo todo com os próprios limites, e superá-los a cada dia. É saber que existe uma redenção aguardando os mais perseverantes ao final da jornada, e que é necessário sofrer bastante no caminho para que essa redenção seja ainda mais valorizada.

A leitura de determinados livros guarda estreita semelhança com o ato de subir uma montanha. Somos o tempo inteiro instigados por nosso corpo – no caso, a nossa mente – a desistir de tudo aquilo e voltar para o conforto de um Hemingway ou de um García Márquez, onde nos sentimos em casa. Em alguns casos, acabamos desistindo no primeiro terço ou na primeira metade, e olhamos com desalento o trecho intransponível das páginas restantes. Já me vi, por motivos diversos, desistindo de encarar o topo de um Everest literário. Não consegui, por exemplo, ir além da página 276 de Auto-de-Fé, a obra maior de Elias Canetti, mesmo acreditando que uma paisagem esplendorosa me esperaria no ponto final, lá pela página 614. Simplesmente cansei de acompanhar as desventuras do misantropo Peter Kien e sua relação com a governanta abjeta. Seguir adiante seria como insistir na subida do Aconcágua mesmo sabendo que os dedos do pé ficariam necrosados ou que o coração não suportaria tamanho esforço. O mesmo aconteceu com Palmeiras Selvagens, de Faulkner, Ulisses, de Joyce, e Morte a Crédito, de Céline, para ficar apenas com as montanhas de alto grau de dificuldade.

Por outro lado, consegui transpor esta semana um verdadeiro K2 (a segunda maior montanha do mundo e a mais perigosa de todas elas). É provável que existam livros mais penosos de superar do que Moby Dick – e O Som e a Fúria está aí para comprovar –, mas há muito tempo não sentia tanta dificuldade em terminar um romance como no caso da obra máxima de Herman Melville. Após um início promissor o livro empacou, como uma caravela num mar sem vento, muito em função das digressões do autor sobre detalhes anatômicos dos cachalotes, baleias verdadeiras e outros leviatãs, que ocupavam páginas e mais páginas, exigindo uma leitura disciplinada e em muitos momentos exaustiva. Até que em dado momento optei por pular as passagens que não levavam a nada, acredito, para me concentrar na verdadeira história. Foi então que, passadas as 400 primeiras páginas – nas quais padeci de sensações semelhantes à vertigem no ar rarefeito – me vi diante do topo do mundo nas cem últimas páginas.

Cem páginas de um embate de contornos bíblicos entre o homem e a natureza selvagem, feroz e libertadora, representada pelo cachalote branco. Ahab e Moby Dick se irmanam numa fúria mútua cega e destrutiva. Não sei se carregam um carma demoníaco, uma maldade intrínseca à qual são incapazes de resistir. É provável que não. Pelas pistas deixadas por Melville ao longo do livro, ambos são apenas títeres nas mãos de um ser supremo, e promovem nas águas do Oceano Pacífico a encenação de uma tragédia escrita no princípio do mundo. Daí o acento fatalista que acompanha a obsessiva jornada do Pequod rumo à própria destruição, como se outro destino fosse impensável. Como dirá o autor ao final do livro: “A grande mortalha das águas continuou a ondular, como já ondulava cinco mil anos antes”. Por tudo isso, seria um reducionismo dizer que Ahab representa a insanidade que habita as sombras de cada ser humano. Seu ódio está a serviço de algo muito maior, que ele não consegue apreender. Uma mão invisível que o empurra na direção da baleia, por mais que intimamente saiba que deve fugir dela. “Oh, morte solitária em vida solitária! Oh, agora eu sinto que minha mais alta grandeza jaz em minha mais alta mágoa”.

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