domingo, 31 de janeiro de 2010

Simples assim


Quando À Deriva foi lançado, Luiz Zanin Oricchio, crítico de cinema do Estadão, escreveu que o filme de Heitor Dhalia deixava entrever uma “inclinação francamente incestuosa entre pai e filha”, vividos respectivamente por Vincent Cassel e a estreante Laura Neiva. Ele prossegue: “Tudo muito sutil, verossímil, nada explícito. Como uma energia pulsante, que se mostra e se esconde em seguida”. Zanin deve ter se valido do seu conhecimento de psicanálise para pinçar da narrativa esse componente incestuoso latente. Mas, por mais que repasse seguidas vezes o filme na mente, não consigo enxergá-lo. Vislumbro apenas algo mais singelo, banal mesmo: um amor incondicional, franco e visceral entre um pai e sua filha, e acima de tudo um amor despido de todo e qualquer componente sexual. Até porque, nesse quesito, a atenção do pai está completamente direcionada para a amante americana.
É claro que há hormônios espocando por todo lado, afinal estamos numa atmosfera solar, praiana, maciçamente habitada por adolescentes que soltam faíscas a cada atrito de peles e adultos que vêem no adultério uma válvula de escape para o fastio do casamento. E é compreensível que, ao observar sorrateiramente o pai fazendo sexo com a amante, uma fina membrana de inocência se rompa na alma da filha, e esse rebentar traz a reboque desilusão, decepção e um certo desamparo. Pois À Deriva fala de um mundo em decomposição (o ninho aos poucos desfeito, a infância aos poucos ficando para trás, o amor entre os pais se esfacelando). Por outro lado, esse mundo está sendo substituído por outro em tese mais animador (as descobertas da vida adulta, a sensação ilusória de invulnerabilidade, o poder avassalador da sedução). Em qualquer desses mundos, porém, pai e filha transitam invariavelmente por compartimentos sexuais estanques, que vez por outra roçam um no outro, mas jamais se intercambiam.
Acho que foi Contardo Calligaris quem matou a charada ao comentar o filme em sua coluna na Folha de S.Paulo: “O caminho pelo qual uma menina se torna adulta é quase uma alquimia: existe um fio tênue, mas decisivo, que separa um desejo paterno incestuoso de um olhar do pai que confira à menina a certeza de que ela é desejável como mulher. (...) Quando a história acaba bem, o que sobra é a sensação de um amparo paterno, de um lugar de ternura e de amor para o qual é possível voltar para se lavar das eventuais asperezas e sujeiras do desejo, mas um lugar que não infantiliza porque o pai continua enxergando e admirando a mulher que a menina se tornou”. É uma análise certeira. E na cena final de À Deriva esse amparo fica evidente: a filha que volta para o que restou do ninho – o pai já separado da mãe, aliviado por reencontrá-la depois de procurar por ela a noite inteira – buscando antes de tudo ternura e amor (e os encontrando). Que incesto pode haver naquele abraço final, ou em qualquer outro abraço entre os dois? O amor entre pai e filha, quando existe de fato, dispensa elucubrações psicanalíticas. É prosaico como um carinho distraído, ou um olhar de cumplicidade seguido de um sorriso.

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