terça-feira, 16 de março de 2010

Passarinhos


Alguns textos possuem a estranha mania de nos deixar asfixiados, emudecidos, sem ar. Doem na gente como uma incisão. Acabo de sair do blog da jornalista Eliane Brum, ex-repórter da revista Época, e é assim que me sinto depois de ter lido seu texto mais recente. Um texto que nos arremessa para dentro do que existe de mais brutal, estúpido e obtuso na mente e no comportamento humanos. Eliane conta a história de Nujood Ali, uma menina de 10 anos que escapou de uma prisão domiciliar informal para pedir o divórcio em um tribunal. Sim, divórcio. Sim, 10 anos. Nascida numa família miserável no Iêmen do Sul, país igualmente miserável de maioria muçulmana, ela foi entregue pelo pai a um homem com mais de 30 anos, que a violentava e espancava todas as noites.

Nujood tinha nove anos quando foi entregue a esse sujeito. É a idade da minha filha. Impossível não sentir um aperto no peito, uma indignação muda, como se algo em mim se dilacerasse. Afinal, eu sei muito bem que uma criança de nove anos deve ser abraçada da mesma forma que uma mão deve segurar um passarinho. Antes de ir ao Tribunal, a menina chegou a procurar socorro na própria família. Encontrou só indiferença. Fico imaginando o mundo que desmoronou dentro dela ao perceber que não teria ajuda nem das pessoas que teoricamente seriam responsáveis por tratá-la como um passarinho. À inocência física perdida na cama somou-se a perda de um tipo mais valioso de inocência: o defloramento da alma.

Dentro do possível, o caso de Nujood terminou bem, embora ela tenha voltado a morar com os familiares após conseguir o divórcio. E o seu caso – que ganhou o mundo, virou livro e a transformou numa improvável celebridade – se tornou um precedente histórico para outras crianças recorrerem à justiça do país com sucesso. Mas Eliane Brum não nos concede o benefício de um final feliz, pois a vida não cabe num filme de Hollywood. Ela prefere comparar a vida no Iêmen com a realidade brasileira, esta terra devastada onde meninas de 7 ou 8 anos praticam sexo com caminhoneiros ou onde políticos e outras autoridades forjadas na intimidação arregimentam crianças da mesma idade para orgias com adultos. Enfim, não estamos em melhor situação do que um país em ruínas fincado num pequeno rincão do Oriente Médio, onde o analfabetismo atinge 41% da população e conflitos separatistas já provocaram o êxodo de 150 mil refugiados.

Não vou me estender no assunto, até porque Eliane faz isso com muito mais competência. Fico apenas pensando na minha filha, com sua inocência plenamente preservada. E em Nujood, que justificou sua decisão de querer o divórcio dizendo apenas que “não suportava mais”. E também na existência lancinante de crianças e mulheres em países como Nigéria, Afeganistão, China, Sudão ou Cazaquistão. Estamos falando aqui de coisas pesadas, como tráfico de escravas sexuais, mutilação genital, afogamento de bebês do sexo feminino, apedrejamento em praça pública e outras aberrações. No mês em que o Dia da Mulher é comemorado, fica ainda mais fácil perceber o quanto existe de hipocrisia por trás das rosas vermelhas, das homenagens em anúncios de jornal e dos cumprimentos respeitosos dos colegas de trabalho. A emancipação feminina e todas as conquistas que ela trouxe a reboque (a pílula, a inclusão efetiva no mercado de trabalho, o divórcio e muito mais) representam apenas uma camada fina e opaca que esconde o inferno de ser mulher em uma vasta área do planeta. Esse bicho esquisito que todo mês sangra, como diz Rita Lee. Não necessariamente por causa da menstruação.

2 comentários:

Nina disse...

Nossa, Paulo!!

Eu adoro a Elaine. Mas evitei ler esse texto, acredita? Já conhecia a história, e acho triste demais.

Não pela condição de mulher, mas pela de ser criança.

Aliás, saiu um artigo muito bom na The Economist sobre o genocídio de fetos femininos no mundo:

http://bit.ly/c7tncz

Bj

Paulo Sales disse...

É, Nina, o fato de se tratar de uma criança é ainda mais estúpido, por mais que seja comum. Como eles aceitam? Como um pai entrega sua filha para um animal desses? A violência contra o sexo feminino é algo que me deixa abismado, sobretudo pelo contexto cultural arraigado no qual ela está inserida. Dói muito.
Um beijo.