quarta-feira, 21 de abril de 2010

Corações atormentados


Passeava pelos canais a cabo ontem à noite quando me deparei com uma cena de Na Natureza Selvagem, que havia assistido algum tempo atrás. Era um momento decisivo do filme, no qual o protagonista, o jovem Christopher McCandless, abandona uma provável trajetória profissional de sucesso em troca de uma rica – e arriscada – experiência existencial, profundamente alicerçada no estoicismo pregado por Liev Tolstói, Jack London e Henry David Thoreau, mais precisamente por este último. Vale salientar que McCandless, personagem real cuja história ganhou o mundo através do romance de Jon Krakauer, no qual o longa de Sean Penn é baseado, não buscava inspiração nas obras desses autores, e sim em suas vidas.

Criador de Guerra e Paz e Anna Karenina, entre muitos outros romances fundamentais, Tolstói foi um bem-sucedido latifundiário, que nos últimos anos de vida renegou a fortuna e a vida burguesa e partiu de trem pela Rússia para conhecer de perto a realidade do seu país. Morreu de pneumonia numa estação insalubre. Já London era um aventureiro em tempo integral, posteriormente influenciado pelo ideário comunista, peculiaridades que se materializaram em livros como O Chamado da Floresta e De Vagões e Vagabundos. Já Thoreau – ao que parece a influência primordial do jovem – foi um precursor do anarquismo e da ecologia, que não mediu esforços para pôr em prática as teorias que formulou nos seus livros, incluindo aí o clássico Desobediência Civil.

Ingênuo, profundamente atormentado e minando vida por todos os poros, McCandless se deixou levar até o limite pelas pregações por vezes irresponsáveis – mas inegavelmente sedutoras – desses autores. E descobriu muito tarde que elas não podiam ser levadas ao pé da letra. Afinal, como ele mesmo constatou, a felicidade não se consegue sozinho. Mas até que ponto o jovem filho de aristocratas não atingiu o seu intento? Morrer solitário no Alasca não era o epílogo esperado por quem sorveu sem meias-medidas o legado dos seus antecessores? Pode ser. Mas Tolstói se despediu da vida já octagenário, enquanto London e Thoreau já haviam passado dos quarenta (no caso do autor de Caninos Brancos, a morte se deu por vontade própria). McCandless contava apenas 22 anos. É fato que seu último ano de vida valeu por décadas, mas e daí? Duvido que ali, no ônibus abandonado que se tornou o seu esquife, ele não ansiasse por mais nacos de vida, enquanto agonizava na solidão absoluta.

***

Aos 20 anos, eu também me deixei influenciar pela vida – muito mais do que pela obra – de um escritor. É uma escolha (involuntária, claro) arriscada. Nessa época, a vida de Jack Kerouac me parecia o caminho a ser seguido. Um contraponto de audácia e destemor à tormenta perene que habitava a minha alma. O que me seduziu no velho Jack não foram as deliciosas aventuras regadas a álcool e anfetaminas de Sal Paradise e Dean Moriarty em On The Road, mas sim o embate silencioso entre religiosidade e hedonismo que forjou a matéria-prima do autor em Kerouac – Uma Biografia, o excepcional livro de Ann Charters. Aí sim eu encontrei o meu espírito, como costumava escrever nesses tempos. Charters esmiuçou implacavelmente as contradições que habitavam o coração atormentado de Kerouac, alicerçadas na perda nunca superada do irmão Gerard, na relação de dependência e respeito com a mãe e na homossexualidade em parte reprimida (que na época me chocou, por considerá-la incongruente com o ideal do aventureiro macho que pede carona nas estradas e se envolve de maneira fugaz, mas intensa, com mulheres).

Não fui o mesmo depois de Kerouac, o homem e o biografado. Tentei encontrá-lo nas estradas esburacadas rumo ao sul, na tremenda solidão das viagens de ônibus e caronas e no sentimento genuíno de perda de alguém que tinha o sangue igual ao meu. Mas o Brasil de 1990 era muito diferente dos Estados Unidos dos anos 40. E eu era muito diferente de Kerouac. Percebi que anfetaminas, cocaína, ópio, heroína e outros psicotrópicos não faziam parte da minha dieta existencial, embora comungue com o velho Jack o apreço por líquidos com alto teor etílico. Enfim, o criador de Big Sur e eu pertencíamos a mundos impermeáveis um ao outro, como mais tarde constatei que havia em mim muito pouco de Hemingway ou Fitzgerald, nos quais me espelhei aos 30 anos. Até porque precisaria ganhar em euros um salário exorbitante para torrar na Riviera Francesa ou nos cafés de Paris, onde eles um dia fizeram suas festas móveis. Além, obviamente, de não ostentar sequer uma nesga de todo aquele talento. Em suma: no meu caso, o caminho do excesso jamais levaria ao palácio da sabedoria. Sou o que sou, e isso, hoje, me basta. Afinal, não quero morrer de hemorragia abdominal por excesso de álcool ou pulverizar meus humildes miolos com uma bala de carabina.

4 comentários:

Nina disse...

Ah, gostei muito desse texto.

Adoro esse filme, tanto que tenho uma cópia em casa. Trilha sonora foda!

No entanto, o fato de ser uma história real me dói sempre pelo desperdício de juventude, de talento... de vida, enfim!

Bjo!

Paulo Sales disse...

Obrigado, Nina.
É, a sensação que tenho também é de desperdício. De que vale chegar ao extremo e buscar o excesso para depois jogar tudo fora? Reverenciar demais os ídolos pode ser uma coisa arriscada, embora sedutora.
Um beijo.

Marcos disse...

Precisamos tomar umas.

E "chegar ao extremo", "buscar seus excessos" tem lá o seu valor. Viver intensamente te faz sentir mais... vivo! Lógico q vc tem q saber seus limites, pra poder ter ainda mais tempo de aproveitar tudo q a vida tem a oferecer. Abs

Paulo Sales disse...

Sim, durante um tempo a busca pelo excesso é fundamental, senão você se torna um bobão careta antes dos 30 anos. O problema é saber a medida certa, o ponto de retorno. Muitos dos meus ídolos de juventude não souberam, e foram embora cedo demais. Não quero isso para mim.
abração.