terça-feira, 31 de agosto de 2010

A solidez do compensado


Hoje acordei com vontade de ouvir Adoniran Barbosa. De sorrir ao escutar suas tiradas hilárias e me comover com a ingenuidade dos seus personagens. Pus um CD enquanto me arrumava para o trabalho e fiquei ouvindo canções como Apaga o fogo, Mané, Uma Simples Margarida e Despejo na Favela. O centenário de Adoniran foi comemorado com pompa em São Paulo, onde ele se eternizou como o cronista dos humildes. Um reconhecimento merecido. Afinal, há muito mais do que bom humor e irreverência na sua obra. Com um pouco de atenção, é possível identificar bolsões de ternura e melancolia circundando aqueles pequenos sonhos desarrumados pelo cotidiano, aqueles dramas envolvendo barracos derrubados e romances irrealizados pela precariedade financeira de quem os protagoniza. Impossível, por exemplo, não se emocionar com a dramaticidade de Saudosa Maloca (pinçada de forma precisa por Elis Regina numa interpretação inesquecível): “Peguemos todas nossas coisa e fumos pro meio da rua apreciar a demolição. Que tristeza que nós sentia, cada tauba que caía doía no coração”. É um sentimento genuíno, sólido como um compensado vagabundo que protege do frio.

Adoniran é a prova inconteste de que a música brasileira conseguiu falar com as classes populares de igual para igual, e não de cima para baixo, com aquele incômodo olhar sociológico tão freqüente no cinema e na literatura do país. Nesse sentido, o autor de Trem das Onze é muito mais autêntico que um José Lins do Rego ou um Glauber Rocha, para ficar em duas figuras emblemáticas. Não era um intelectual, não discursava para as massas nem pretendia doutriná-las. Apenas reproduzia em forma de canção o que ouvia nas ruas do Bixiga, do Brás e do centro velho. Adoniran fazia parte daquelas vielas, cortiços e botecos, tão caros à memória de quem, como eu, morou naquela região. Alimentava-se daquilo. Seu fio de voz, marinado em cigarro e cachaça, testemunhou uma cidade em feroz transformação, mas ainda provinciana e amigável. Ele foi embora, essa cidade também. Resta sua obra, o que não é pouco.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Efeitos colaterais


É bem provável que o desfecho seja diferente, mas o caso dos 33 trabalhadores soterrados a 700 metros da superfície, após o desabamento de uma mina no deserto do Chile, me fez lembrar de uma tragédia ainda mais grave: a dos marinheiros do Kursk. Para quem não recorda, o Kursk era um submarino nuclear russo que, no dia 12 de agosto de 2000, afundou no Mar de Barents, a 108 metros de profundidade. Sabe-se que 23 dos 118 marinheiros sobreviveram a uma explosão e esperaram por horas o resgate em meio ao breu e ao ar rarefeito. Mas o descaso das autoridades russas (comandadas por Vladimir Pútin, um homem de pouco apreço pela vida alheia) fez com que esse resgate nunca chegasse. Como deve ter ocorrido com os russos, acredito que em algum momento os chilenos devem ter imaginado que seriam enterrados vivos. Que aquele espaço exíguo onde se refugiaram acabaria se tornando um esquife coletivo, uma vala comum onde repousariam por toda a eternidade.

O fato é que tanto a tragédia russa quanto o acidente chileno são efeitos colaterais da busca humana pela superação dos limites físicos, empreendida nos pontos mais extremos do planeta, e até fora dele. A inquietação da espécie é o motor da civilização, e ela existe desde aquele momento primordial em que um hominídeo se armou de um osso para se proteger do inimigo. Vale lembrar que, mais de um século antes dos dois acontecimentos, Jules Verne já havia imaginado um veículo capaz de descer às profundezas da zona abissal (em 20 Mil Léguas Submarinas) e descrito uma peregrinação científica rumo ao umbigo do planeta (em Viagem ao Centro da Terra).

Protagonistas dos dois romances, Capitão Nemo e o Dr. Lidenbrock são fruto de uma era de utopias, o século 19, quando se imaginava que o surgimento e o domínio de novas tecnologias levaria a um mundo mais próspero e pacífico, com mais pessoas vivendo em condições dignas. O século 20 veio em seguida e tratou de sepultar essas utopias. Se por um lado nunca houve tantos avanços tecnológicos quanto nos últimos 100 anos, por outro nunca se matou tanto quanto no mesmo período, em muitos casos com o auxílio desses mesmos avanços. A culpa, em todo caso, não é da tecnologia, mas do uso que se faz dela. É a tecnologia que provavelmente vai retirar aqueles homens barbudos e extenuados lá de baixo, assim como foi a falta de disposição para usá-la que não deu aos marinheiros do Kursk a mesma oportunidade.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

O fim da política


Outro dia reproduzi aqui no blog a seguinte frase de Albert Camus: “A política e o destino da humanidade são moldados por homens sem ideais e sem grandeza”. Uma frase que, passados 50 anos da morte precoce do autor de O Estrangeiro, permanece vívida como um desarranjo nos intestinos da civilização. E nem estou me referindo aqui aos homens sem ideais e sem grandeza que movem o mundo e atravancam o nosso caminho: de George W. Bush a Vladimir Pútin, de Mahmoud Ahmadinejad a Kim Jong II. Falo da arraia-miúda (ou nem tanto) que habita os noticiários e o programa eleitoral gratuito cá por estas bandas ao sul do Suriname. Uma gente sem graça e sem vergonha que aparece para nós de dois em dois anos, com seus sorrisos postiços e seus discursos mal decorados.

A política, na prática, não me interessa. Já me interessou durante a juventude, sobretudo em 1989, naquela eleição histórica que terminou em catástrofe, com a vitória de um embuste sobre o suposto mensageiro da utopia. Agora não restam utopias, apenas o cinismo. Mesmo aquilo que em eleições passadas produzia um desafogo, hoje produz enfado. Impossível esboçar um sorriso, por exemplo, com as tiradas do cantor e humorista (?) Tiririca, que se lançou candidato a deputado federal em São Paulo com o slogan “pior que tá não fica”. Fica, sim. O fato de Tiririca ter chances reais de entrar para o Congresso Nacional é por si só uma constatação de que não dá para prosseguir com o velho chavão de que só nos resta “rir das nossas desgraças”.

Enquanto isso, a eleição presidencial caminha para ser decidida no primeiro turno, vencida por uma candidata de currículo nebuloso e sotaque mais nebuloso ainda. Uma verdadeira personificação da palavra incógnita. Faz um certo sentido, já que se busca a continuidade, e não a ruptura – que talvez só viesse mesmo com a eleição de Marina Silva. Mas não me animo a discorrer sobre o assunto. Tanto na esfera nacional quanto na local, são flagrantes a repetição exaustiva de fórmulas publicitárias e a impressão de que aquelas pessoas que lhe sorriem estão na verdade se lixando para você. O que acaba provocando um efeito recíproco: passamos a nos lixar para elas, para o destino do país e para o nosso próprio futuro como cidadãos que vivem numa nação miserável. É um alheamento arriscado, e a história ensina onde ele pode chegar.

(ilustração retirada do blog http://turmacaribepi.blogspot.com)

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Estrangeiro


Hoje baixei o disco A Revolta dos Dândis, do Engenheiros do Hawaii, grupo que adorava na adolescência e cujas canções não escutava atentamente havia muito tempo. Coloquei para tocar no carro, ouvi os versos, de uma ingenuidade comovente, e tentei me lançar de volta ao passado. Retroceder até o rapaz de 17 anos que chegou com o vinil de capa amarela nas mãos, pôs o disco no som da sala do apartamento dos pais, apagou a luz e se deixou arrebatar por frases como “nós não precisamos saber para onde vamos, nós só precisamos ir”. Algo se descortinava ali, embora não soubesse exatamente o quê. Talvez uma ânsia por novas paragens, uma inclinação pelo existencialismo empírico contido naquelas canções ou quem sabe uma valorosa sensação de cumplicidade.

Em 1987 o mundo parecia em suspensão. Vivíamos uma espécie de fim da história, para usar a expressão de Francis Fukuyama. Um limbo sem sobressaltos geopolíticos: a Guerra Fria já deixara o auge e se encaminhava silenciosamente para a derrocada, e por aqui os anos de chumbo já haviam dado lugar a um arremedo de democracia. Impossível cultivar utopias ou partir para o desbunde – nossos pais e irmãos mais velhos já tinham passado na frente e vivido tudo isso. Enquanto Humberto Gessinger falava em “americanos e soviéticos”, nós (eu pelo menos) ainda acreditávamos no socialismo como a única via. Não sabíamos, obviamente, que o Muro de Berlim implodiria dali a dois anos e o império vermelho, dali a quatro. Enfim, havia uma convulsão silenciosa em curso, e não imaginávamos o quanto nossas escolhas ideológicas, ainda tão incipientes, já eram anacrônicas.

Tento lembrar em vão o que pensei ali no sofá, no escuro, enquanto meus pais assistiam TV no quarto da televisão. Recordo apenas que acalentava o desejo de me tornar um cantor de rock, embora me faltassem voz para cantar, ouvido para tocar e cara de pau para me apresentar em público sem esses requisitos. Era um garoto que como outros amava Legião, Engenheiros e RPM, seduzido por versos como os de Infinita Highway, recheados de referências ao universo beat, que já então se prefigurava como uma válvula de escape literária em meio ao marasmo e ao dilacerante sentimento de inadequação. A dúvida era o preço da pureza? Não faço idéia. Ingênuo até os ossos dos dedos dos pés, eu apenas me embebia de dúvidas enquanto buscava certezas, e evidentemente não me sentia preparado para a vida adulta.

O mais estranho de tudo isso é perceber como essas reminiscências são vívidas, frescas e próximas, como uma tela ainda por terminar. Como se o rapaz de 17 fosse vizinho de porta do homem de 40 e se vissem todo dia, quando o primeiro fosse para a escola e o segundo, para o trabalho. Nada como um velho clichê – no caso, o “parece que foi ontem” – para denotar a sensação de proximidade. E nada como um verso de Gessinger para deixar evidente que o tempo, afinal, praticamente não alterou o que eu sou na essência: “um estrangeiro, passageiro de algum trem que não passa por aqui, que não passa de ilusão”.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O antes, o agora e o depois


Numa crônica recente, Luis Fernando Verissimo refletiu sobre o fascínio que o fascismo exerce na juventude dos países do Leste Europeu. E justificou essa tendência com uma tese interessante: como esses países não puderam compartilhar a avassaladora revolução cultural que varreu os países ocidentais nos anos 60, os jovens de lá têm como modelo o anacrônico nacionalismo pré-Segunda Guerra de Hitler e Mussolini, e não a subversão dos costumes promovida pela era hippie. Como se os tanques soviéticos que sufocaram as sublevações ocorridas na Hungria e na Tchecoslováquia tivessem também sufocado a passagem do tempo. Ou seja: como se por trás da antiga Cortina de Ferro as pessoas vivessem ainda no ano de 1933. Uma época propensa à adoração de ditadores inescrupulosos e pregações a favor do extermínio de judeus, ciganos e outras raças historicamente perseguidas.

O grande risco da humanidade é não aprender com os erros do passado, embora talvez seja o caso de pensar que vivemos realmente em diferentes eras, devidamente estanques entre si – impossível, portanto, aprender com os erros do passado, já que ele ainda é futuro em alguns cantos do planeta. É como se a Terra fosse uma gigantesca ilha do seriado Lost (que não assisti, apenas li a respeito), com suas camadas temporais sobrepostas, nas quais passado, presente e futuro convivem em plena desarmonia. Para transitarmos entre o antes, o agora e o depois, não seria necessária uma máquina do tempo como aquela imaginada por H.G. Wells. Bastaria, por exemplo, uma viagem à Suécia ou à Noruega para nos defrontarmos com uma legítima nação de bem-estar social dos anos 1950, os chamados welfare states, com prosperidade infindável e proteção total ao cidadão, através de sólidos investimentos em projetos sociais. Por outro lado, ir ao Sudão ou a Serra Leoa equivaleria a uma longa jornada rumo a um passado muito mais longínquo, quando os impérios colonialistas deflagraram a ruína de qualquer projeto de civilização viável nesses países. Já um passeio ao Irã de Mahmoud Ahmadinejad ou ao Afeganistão dos Talibãs seria quase um safári, sem passagem de volta, pela era medieval.

Com um presente que se assemelha de tal forma ao passado – para o bem e para o mal –, é de se pensar se há mesmo futuro para a civilização humana. Há, obviamente, mas não necessariamente um porvir alvissareiro. Basta, por exemplo, passar um olho no Brasil, onde ontem e amanhã se encontram e se chocam permanentemente. Em Salvador, cidade em que vivo, é possível contemplar o século 21 e o século 19 cindidos por apenas uma avenida: de um lado, edifícios de apartamentos luxuosos, com arquitetura inovadora e carros de última geração nas garagens; do outro, casebres sem reboco, habitados por miseráveis que reencarnam a chaga da escravidão. A Casa Grande e a Senzala. No meio disso tudo estamos nós, passivos e vulneráveis, tentando a todo custo nos desvencilhar de um dos lados e sermos aceitos no outro.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Moinhos


Quando se tem uma filha de nove anos, por quem manifestamos uma devoção quase religiosa, fica ainda mais difícil assimilar o clichê de que criamos os filhos para o mundo, e não para nós mesmos. Afinal, ela está devidamente amparada dentro do ninho, dependente de nossas ações e ainda incapaz de ganhar vôo próprio. Sei que isso vai mudar, e que o mundo vai roubar meu pequeno passarinho. E que, tal qual o moinho do verso de Cartola, vai triturar seus sonhos, tão mesquinho. Tentarei estar aqui para acalentá-la quando isso acontecer, mesmo sabendo que o ícone que um dia fui já terá ruído, restando apenas o afeto e a percepção de que sou tão imperfeito e vulnerável quanto qualquer outro ser humano.

Hoje caminhei na praia com minha filha. Enterramos nossos pés na areia e deixamos que a espuma da água do mar passasse por cima deles. Observamos nuvens que se assemelhavam a animais e vimos lá no alto um avião que rumava para o norte. E pensei em Paul Gauguin, que abandonou a mulher com os cinco filhos para desbundar e morrer nos mares do sul, onde se amasiava com nativas de 14 anos e consumia doses cavalares de álcool, enquanto pintava os quadros que o tornariam eterno. Se é esse o preço que se paga pela imortalidade, prefiro despontar para o anonimato. A julgar pelo relato de Mario Vargas Llosa em O Paraíso na Outra Esquina, que estou lendo, Gauguin sofreu horrores com a morte de sua filha Aline, aos 20 anos, vítima de tuberculose. Mas já estava num caminho sem volta, no qual não cabia a existência de um filho (quanto mais cinco).

Enfim, Gauguin levou ao pé da letra o velho clichê, mas, em vez de criar os filhos para o mundo, apenas os lançou nele, deixando-os ao relento. Até aí não há nenhuma novidade. São muitos os órfãos de pais vivos, que encerram em algum recanto de si mesmos a vergonha do abandono. Como os filhos de alguns descendentes de japoneses que voltam ao Japão, deixando as famílias no Brasil. De início, os pais mandam cartas e dinheiro, que aos poucos vão rareando, rareando, até se tornarem um retrato na parede – mas como dói, como diria Drummond. Curioso que eu tenha lembrado agora do poeta itabirano, que viveu até os 85 anos, mas só conseguiu suportar por 12 dias a perda da única filha, Maria Julieta. Talvez seja esta a mais nítida amostra do amor incondicional de um pai por uma filha: não conseguir viver sem ela.