sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Somos pássaro novo longe do ninho


Desde o domingo passado queria escrever sobre o Legião Urbana, a banda que adorei acima de todas as outras quando percorri o acidentado percurso dos 16 aos 20 e poucos anos. Havia acordado naquela manhã com vontade de ouvir, feito um adolescente, a voz de Renato Russo despejando lirismo e desencanto pela sala. A semana passou, o trabalho apertou e acabei não escrevendo nada. Até que ontem li um texto no blog de Luís Antônio Giron sobre as suas memórias dos tempos de Legião, motivadas pelo relançamento da obra completa da banda. Giron é um jornalista que passei a admirar com o passar dos anos, e cheguei a entrevistá-lo na época do lançamento do livro que escreveu sobre o cantor Mario Reis. É um sujeito educadíssimo, algo que deixa transparecer no texto. Um texto essencialmente afetivo, que fala sobre muitas das coisas que eu gostaria de ter escrito sobre Renato Russo e sua turma, só que com muito mais autoridade e brilhantismo.
O fato é que, passados 14 anos da morte de Russo, o Legião não se tornou uma peça arqueológica, por mais que alguns jornalistas menosprezem os artistas e bandas surgidos nos anos 80. Justamente os meus anos de formação, quando passei a tentar compreender (sem sucesso) o funcionamento das engrenagens que moviam a minha história e a história propriamente dita. Assim como alguns escritores e outros compositores, Renato Russo foi essencial naquele incipiente processo de auto-descoberta, que por sinal ainda não terminou. Afinal, era difícil ficar indiferente a versos fatalistas e por vezes incompreensíveis, mas que tocavam fundo na gente e proporcionavam uma improvável sensação de aconchego. Coisas como “Somos pássaro novo longe do ninho” ou “Há tempos nem os santos têm ao certo a medida da maldade. E há tempos são os jovens que adoecem. E há tempos o encanto está ausente e há ferrugem nos sorrisos. Só o acaso estende os braços a quem procura abrigo e proteção”.
Giron escreveu que “não há uma única palavra mentirosa nas canções da banda”. É essa sinceridade que me comove ainda hoje. Isso ficou claro ao escutar, no trajeto de casa até a praia na manhã do último domingo, O Descobrimento do Brasil, o penúltimo disco e um dos menos badalados do grupo. São canções de uma singeleza tocante, que abordam temas como dignidade, alteridade, bondade, respeito e, de quebra, alguns nacos de felicidade. Decência, em suma – mas não decência num sentido moralista. Ou talvez sim. O que é o moralismo senão o valor supremo a partir do qual devem ser regidas as relações humanas? Nesse sentido, as letras de Renato Russo passam uma sensação de caretice, de coisa ultrapassada. Mas na verdade são os próprios valores preconizados por elas que estão ultrapassados. Não há nada mais fora de moda do que prezar e praticar a ética, numa sociedade brutalizada em todos os aspectos e caracterizada pelo cinismo recorrente. Talvez por isso eu me sinta um velho quando uma canção aparentemente inofensiva umedece meus olhos e seca minha garganta. “Quem está agora ao teu lado?
Quem para sempre está? Quem para sempre estará ?”. Tão pueril e ao mesmo tempo tão poderosa.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Um talento forjado em amargura


Carregamos a infância por toda a vida. Suas descobertas, perdas, frustrações e pequenas alegrias são como uma tatuagem invisível da qual nos livramos apenas na morte. Talvez por isso, seja praticamente impossível para uma criança que não recebeu afeto manifestar afeto na idade adulta. Cria-se involuntariamente uma carapaça, um invólucro refratário ao amor e às suas manifestações. A Ausência de afeto fez de Charles Bukowski um homem embebido em amargura. As surras diárias – violentíssimas e sem sentido algum – que recebia do pai, aliadas à incapacidade da mãe de evitá-las, o transformaram num homem permanentemente ferido, que vislumbrou no alcoolismo, nas brigas de bar e no vagar errante por subempregos uma improvável válvula de escape. Seria apenas mais um mendigo anônimo, como tantos que vemos por aí, lançados às ruas, se não contasse com um talento maiúsculo – e uma obstinação vigorosa para fazê-lo chegar aos seus leitores.

Bem, pelo menos foi isso o que depreendi ao assistir Bukowski – Born into This, um excepcional documentário dirigido por John Dullaghan. Nele, fica evidente que o escritor só conseguiu se desvencilhar da própria desdita na velhice, quando – para usar uma imagem de sua autoria – parecia ter enfim deixado voar o pássaro azul que habitava seu peito. A desdita pela qual passou, contudo, foi diretamente responsável pela edificação da sua obra e de uma visão de mundo cética, quase niilista. As centenas de poemas e dezenas de obras em prosa que Bukowski produziu deixam entrever com nitidez a sua infância tenebrosa e o desalento que se seguiu a ela. Isso fica claro num depoimento sobre o processo de criação de Misto Quente, seu melhor romance, no qual se mostra comovido, triste, ensimesmado. Corta a cena e lá está ele na casa onde cresceu, sofreu e apanhou, mostrando o lugar na cozinha onde o pai pendurava o cinto com o qual o espancava. É comovente.

Há muitos outros depoimentos preciosos no filme de Dullaghan. E também cenas antológicas, como uma insólita briga de Bukowski com a mulher (captada por Barbet Schroeder nos intervalos das filmagens de Barfly) ou uma animada leitura pública de seus poemas em São Francisco. Mais: vemos cenas prosaicas, cotidianas, como o escritor dirigindo seu carro até uma lavanderia, bebendo (quase sempre) ou chorando ao ler um poema e lembrar de um amor antigo. Enfim, vemos o homem e o escritor como ele foi, com todas as suas idiossincrasias e contradições, mas também com toda a sua ternura.

Bukowski foi, ao lado de Jack Kerouac, meu grande ídolo de juventude. Deixei de ler seus textos com o passar do tempo, mas lembro nitidamente de algumas passagens, dos diálogos ferinos, da força arrebatadora de Misto Quente, Factótum, Crônica do Amor Louco e muitos outros romances, contos e poemas. Ao vê-lo ali, desnudo, tão perto de mim, senti saudade da minha adolescência, e do clarão que se seguiu à descoberta de uma obra tão sincera e poderosa. Mas também senti uma forte pontada de compaixão, ao perceber que essa obra só existiu porque, numa casa modesta em Los Angeles, nos anos 20, um garoto tímido e sensível era surrado sistematicamente por um sujeito abjeto, sob o olhar complacente de uma mãe ausente.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Um momento de eternidade


Ontem pela manhã, logo depois de acordar, minha filha me pediu que colocasse um disco do Madredeus. Então ficamos ali, juntos, observando quase em silêncio a voz de Teresa Salgueiro se derramar pela sala. Foram apenas 15 ou 20 minutos sentados no sofá, mas foi como se esse momento se cristalizasse em algum canto do universo, nos alçando à eternidade. Enquanto ela comentava comigo que a cantora era uma soprano e eu respondia dizendo que poucas vezes ouvira um registro tão agudo (e tão lindo), nós permanecemos lado a lado, eventualmente abraçando distraídos um ao outro, como que envoltos numa bolha imune à vertigem do tempo.

Senti uma espécie de epifania, e uma reconfortante sensação de plenitude me invadiu. É provável que, naquele momento, os minutos tenham pairado no vácuo, como uma pedalada no vazio, enquanto uma voz celestial cantava: “Haja o que houver, eu estou aqui. Haja o que houver, espero por ti”. Assim, simples e puro. Ao lado da pessoa que mais amo, eu me senti invulnerável, como se fosse capaz de estancar a sangria das horas. Depois passou, e voltamos ao chão.

Sei que minha filha vai crescer, e que passará por mudanças físicas e comportamentais que mudarão quase por completo aquela criança que estava ali comigo. Sei também que, tal qual um exército inimigo, os fios brancos vão continuar avançando impiedosamente sobre meus cabelos e meu corpo um dia penderá, como um galho seco. Não importa. Momentos como esse justificam a aventura de existir.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O princípio do prazer


Alguns vinhos envelhecem bem. Alguns filmes também. Queria assistir algo interessante, indisponível na tevê naquele momento, e ao olhar para a minha prateleira de DVDs encontrei Sideways, que não via desde a época em que foi lançado nos cinemas, acho que em 2005. Revê-lo foi uma experiência hedonística, semelhante à queima do charuto dominicano que fumo agora, aos fraseados de Phil Woods que escuto neste momento e ao chardonnay chileno que me acompanha, já na última taça, enquanto escrevo. Estou me referindo, claro, a prazeres sensoriais, mas que trazem embutido um prazer intelectual, feito uma ligeira epifania. Os quatro ou cinco anos que me separam da primeira vez que assisti ao filme de Alexander Payne se fazem nitidamente presentes. Hoje conheço – pelo menos de nome – alguns dos vinhos citados por Miles, o personagem principal, e entendo algumas referências a aromas e sabores que ele elenca no decorrer da história. São motivos a mais para apreciá-la.

O registro humorístico de Sideways é seu grande trunfo, porque confere leveza a temas áridos, como depressão, carência afetiva, alcoolismo e um lancinante sentimento de inadequação. Miles é um grande personagem, assim como Jack, o amigo tosco que o acompanha para viver uma inusitada despedida de solteiro em meio aos vinhedos da Califórnia. Ambos fogem, nessa jornada, da mediocridade de suas vidas: o primeiro, de um casamento desfeito. O segundo, de um casamento sem futuro, para além do conforto financeiro que irá proporcionar. Um busca alento nos grandes vinhos, outro, no sexo descompromissado. O filme contempla a primeira semana do resto dessas vidas com ironia e leveza, mas também com lirismo e desalento. Há o fim de um ciclo, mas também um recomeço.

Mas foi o pano de fundo que mais me encantou desta vez. Aqueles vinhedos ensolarados despertaram em mim um desejo imediato de viajar até o Vale de Napa. De, como fizeram Miles e Jack, ir parando em pequenos bares e vinícolas para beber vinhos de produção limitada, feitos com afinco por gente de origem rural, meio bronca, como é o norte-americano típico: conservador, protestante, generoso e empreendedor. Nesse sentido, Sideways diz muito mais sobre o espírito da produção do vinho na região do que um filme meio tolo que vi recentemente, chamado Bottle Shock, sobre os bastidores do Julgamento de Paris, quando os rótulos locais superaram os franceses numa histórica degustação às cegas em 1976. Talvez porque, no trabalho de Payne, a bebida seja apenas uma companhia ilustre para as dores e delícias experimentadas pelos personagens, e não um fim em si para a narrativa.

Para mim, também, os vinhos são uma companhia ilustre. Um aprendizado ininterrupto, que passa ao largo do pedantismo e do exibicionismo tão comuns no consumo da bebida entre novos-ricos esnobes. Aprecio seus aromas, sua textura, o prazer singular que proporcionam e a trajetória que fazem desde quando são apenas o sumo dentro das uvas ainda não colhidas até o longo e complexo caminho que enfrentam antes de serem engarrafados, e mesmo lá dentro, quando evoluem lentamente como seres vivos – para usar a expressão de Maya, o par romântico de Miles –, passando pelo auge e decaindo inexoravelmente rumo ao fim. Em muitos finais de noite, como neste, há sempre um deles comigo, proporcionando um prazer solitário herdado de meu pai, perfeito para quem preza o ensimesmamento, a introspecção e as luas minguantes que nascem de madrugada.

***

Segue abaixo a crítica de Sideways, escrita na época do seu lançamento:

A comédia humana*

`Sideways - Entre umas e outras´ empreende uma peregrinação pelas dores e delícias da existência

Não seria exagero afirmar que Sideways - Entre umas e outras é, na essência, um filme sobre prazeres. Alguns essencialmente masculinos e viscerais, como o sexo e o fascínio desmedido pela sedução, outros delicados e universais, como a primeva atração do homem pelo álcool e o delírio silencioso que só os livros são capazes de provocar. Mais do que isso, porém, a comédia sensível e humana assinada por Alexander Payne fala também da inadequação de certos homens ao universo que habitam.

Miles (Paul Giamatti) é um desses homens. Professor do ensino secundário, escritor fracassado, separado há dois anos de uma mulher que não consegue esquecer, ele vê a vida como algo em que se perde muito para se ganhar migalhas. Miles chegou a um ponto da existência em que até os pequenos prazeres que ela proporciona não conseguem mitigar o incômodo de um vácuo gigantesco. É esse homem que parte com o amigo Jack (Thomas Haden Church) numa viagem até o Vale de Santa Inez, conhecido por abrigar os melhores vinhedos da Califórnia.

Lá, eles vão se dedicar à degustação de algumas dezenas de vinhos das melhores cepas, jogar golfe e refletir sobre o bom da vida no meio das plantações de uva. Bem, pelo menos esses são os planos de Miles, enófilo obcecado, que nutre uma devoção exacerbada pelas uvas Pinot, e também um desprezo extremado pelas Merlot. Mas esses não são os planos de Jack, ator de seriados e comerciais de tevê, que tenta reter ao máximo os derradeiros fiapos de juventude fazendo sexo com o maior número possível de mulheres. Na viagem, que é também a sua despedida de solteiro, ele não anseia mais do que sexo rápido e intenso.

Miles e Jack são radicalmente diferentes entre si, e isso de certa forma os complementa. É o amigo que faz Miles permanecer de pé quando as crises de depressão o levam a uma inércia perigosa. E é também quem o protege dos arroubos de violência e da tendência à queda. Miles, por sua vez, serve de reserva moral para a ausência de escrúpulos e o excesso de imaturidade de Jack. Quando eles encontram e se relacionam com Maya (Virginia Madsen) e Stephanie (Sandra Oh), essa amizade se torna vital.

Baseado em livro de Rex Pickett, Sideways - Entre umas e outras se alicerça num roteiro consistente, a cargo de Jim Taylor e do próprio Payne. Há divagações arrebatadoras sobre vinhos e uvas. Numa delas, ao justificar para Maya a sua paixão pela Pinot - uva frágil, que só sobrevive em poucas e remotas regiões do planeta -, Miles está na verdade definindo a si mesmo. É uma seqüência belíssima, na qual a casca da timidez que envolve o personagem finalmente deixa entrever o ser humano valioso que se oculta por trás dela.

Giamatti oscila com a mesma desenvoltura entre o humor desbragado e o drama intimista. Sua atuação é um achado, assim como a de Church, com suas feições schwarzeneguianas e seu olhar bronco. Diretor de As confissões de Schmidt, Payne fez de Sideways uma comédia dramática que jamais cede ao óbvio. Miles e Jack são tipos que a princípio poderiam soar esquemáticos, mas ganham vigor e autenticidade ao longo da projeção. Ao final dela, temos à nossa frente seres humanos que poderiam ser nós mesmos. Ou nossos amigos, ou alguém que conhecemos em determinado momento da vida. E a aflição com o grau de insignificância e efemeridade da existência humana, que os atinge em maior (caso de Miles) ou menor (caso de Jack) medida, também nos acompanha ou acompanhará em algum momento do nosso percurso pela Terra.

* Publicado originalmente no Correio da Bahia

O som e a fúria


Não lembro quem afirmou que tudo de essencial que precisava ser escrito na literatura em qualquer época já foi escrito um dia por William Shakespeare. Nesse sentido, ele seria uma espécie de quintessência, de nascente intelectual ou, parafraseando o título do livro de Harold Bloom sobre sua trajetória, o homem que inventou o humano como o conhecemos. Pelo parco conhecimento que tenho da obra do bardo inglês, seria uma leviandade refutar ou concordar com essa afirmação, mas provavelmente estamos apenas diante de uma frase de efeito, que tem como objetivo abarcar a avassaladora importância de Shakespeare na construção da cultura ocidental.

O fato – e talvez seja isso o que realmente importa – é que a leitura de sua obra proporciona momentos de enlevo difíceis de definir, como os que senti na noite de sábado, ao consumir em algumas horas todo o conteúdo de Macbeth. Há algo de sagrado em se deparar, no calor da batalha (ou seja, lendo o livro), com algumas das sentenças clássicas que há anos encontramos em textos jornalísticos ou em dicionários de citações. Incluindo aquela que talvez seja a definição primordial de Shakespeare sobre a condição humana, pronunciada por um Macbeth em desespero, prestes a ser derrotado e morto pelo exército inimigo. Aquela que em poucas linhas decreta e simboliza toda a nossa valorosa insignificância, a nossa inevitável finitude, o nosso destino implacável:

"O amanhã, outro amanhã, e mais um amanhã se arrastam com seu diminuto passo, dia após dia, até a última sílaba do registro dos tempos; e todos os nossos ontens têm apenas iluminado para os tolos o caminho do pó da morte. Apaga-te, apaga-te, breve vela! A vida não passa de uma sombra ambulante, de um pobre ator que se pavoneia e se agita ao dizer sua fala sobre o palco, e depois é esquecido. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, e que nada significa".