quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A reboque



Hoje eu me deparei com um texto que me deixou comovido. Foi escrito em janeiro deste ano por Marcelo Rubens Paiva e fala sobre o desaparecimento e a morte do seu pai, ocorridos há 40 anos, em janeiro de 1971. Engenheiro e deputado cassado, Rubens Paiva foi preso em casa, por agentes da Aeronáutica, quando se preparava para ir à praia com os filhos numa manhã de feriado. Brutalmente torturado nas dependências do DOI-Codi, ele acabou morrendo por conta dos ferimentos. Não se sabe o paradeiro do seu corpo. “Dia 20 de janeiro é o dia em que a família decretou a data de sua morte. Não temos um jazigo, mas temos uma data artificial”, escreveu Marcelo. 

Rubens Paiva era casado e pai de cinco filhos. Tinha, obviamente, envolvimento com pessoas que atuavam em grupos de combate à ditadura. Mas não estava na linha de frente, nem era o que na terminologia da época se poderia chamar de um “traidor da pátria”. Ao olhar as fotos que acompanham o texto, notei algo de curiosamente familiar. Não sei se porque ele tinha, ao morrer, a mesma idade que eu, 41 anos. Bem, compartilhei o link (postado anteriormente por uma amiga) no Facebook e foi meu irmão mais novo quem matou a charada, após ler o texto e ver as fotos: “O que aconteceu com Rubens Paiva poderia ter acontecido com a nossa família. Você percebeu como até as fotos lembram as da gente quando crianças?”.

Explico: na época do golpe militar, meus pais abrigaram em casa um tio nosso que estava diretamente ligado ao chamado “movimento subversivo”. A polícia estava à caça dele, que acabou conseguindo fugir e se exilar na Itália, se não me engano. Foram dias de tensão e medo, segundo relatos de minha mãe, então grávida do meu outro irmão (eu e meu irmão mais novo sequer éramos nascidos). Só que, para a sorte de todos nós, o ano era 1964, e não 1971, um período muito mais sombrio e particularmente violento da ditadura. Nós nos salvamos. Os Paiva, não.

Voltando às fotos, o fato é que elas, com sua cor desbotada e seus personagens em roupas e penteados hoje fora de moda, simbolizam algo crucial daquele período: a forma com que cidadãos comuns eram levados a reboque pela grande história, aquela que narra os acontecimentos de uma nação, e não de um indivíduo. Paiva, sua família e seus amigos eram gente como a gente, envolvidos em maior ou menor grau naquela sujeirada toda. Daí a semelhança daqueles retratos com os de nossa família e com os de muitas outras famílias que tentavam ganhar a vida naqueles nebulosos anos 70. Uma época de polarizações, de confrontos ideológicos acirrados, de heroísmo e insubordinação, mas também de traição e covardia.

Nem vou entrar nessa questão, mas me parece claro que precisamos repensar o julgamento dos responsáveis pelos mortos e desaparecidos na ditadura, nos moldes do que foi e está sendo feito na Argentina. Uma prova disso está na entrevista do Cabo Anselmo no Roda Viva da última segunda-feira, na qual ele justifica a execução da própria namorada, a paraguaia Soledad Viedma, por ela pertencer a um grupo de luta armada. Guerra é guerra, afinal. Mas, e daí? Eles viviam juntos e ela estava grávida dele. Agente duplo, Anselmo delatou a companheira e seu grupo, pertencentes à VPR, que acabaram massacrados de forma particularmente cruel, até mesmo para os padrões do aparelho de repressão brasileiro. Soledad foi encontrada morta dentro de um barril, com o feto arrancado dela lá no fundo. Eu me pergunto: existe motivo para tal brutalidade? O fato de ela ser uma guerrilheira é suficiente?

Lembro agora do filme Pra Frente, Brasil, de Roberto Farias. Nele, um homem comum é seqüestrado por engano pelas forças da repressão, para em seguida ser torturado e morto, enquanto o Brasil se deliciava com a conquista da seleção brasileira no México. Guardo bem clara uma cena: o personagem de Reginaldo Faria correndo por um campo aberto, tentando fugir dos seus algozes, e logo em seguida sendo alcançado por um veículo do exército. Não deixa de ser uma metáfora interessante: a história alcançando o indivíduo, reduzindo a pó o seu livre-arbítrio e o arrastando violentamente para o esquecimento.

4 comentários:

Clara Gurgel disse...

Análise perfeita do seu irmão, Paulo. Logo me veio à mente, as "fotos lá de casa".Nos anos 60, minha mãe estudava na Faculdade Nacional de Filosofia no Rio e sempre conta o terror psicológico que viviam. Às vezes, helicópteros sobrevoavam a faculdade, dando rasantes,sirenes começavam a soar e vinha uma ordem para que todos deixassem a faculdade imediatamente. Era uma loucura! Uma confusão, todo mundo correndo sem saber muito bem o porquê (e nem podiam perguntar), com medo, enfim, dias inglórios...
Direta ou indiretamente, fomos todos atingidos. Não há como ficar imune.

Paulo Sales disse...

É, Clara, quem viveu aquela época não esquece. Muito menos quem perdeu pessoas queridas, pertencentes ou não à luta armada. É por isso que o governo também não pode esquecer. Isso afetou muita gente.
E queria agradecer a você por ter me "mostrado" o texto de Marcelo Paiva na manhã de ontem. Foi uma bela fonte de inspiração.
Um beijo.

Fred Salles disse...

Muito bom o texto, Paulo Salles. Detalhe: eu nem teria nascido se tivesse sido com nossa família!!!

Paulo Sales disse...

Nem eu, moreno.
abs