terça-feira, 29 de novembro de 2011

Em vão



Dois textos publicados hoje na Folha de S.Paulo se complementam à perfeição, exibindo sem cortes as vísceras do país no qual vivemos. O primeiro é a coluna da comentarista política Eliane Cantanhêde, que aborda a disparidade entre a percepção que se tem do Brasil na Europa e Ásia, altamente positiva, e a realidade que nós, brasileiros, vivemos por aqui. O segundo texto relata o bárbaro linchamento de um motorista de ônibus que, após sofrer um mal súbito e perder os sentidos, bateu em alguns carros e atropelou um rapaz na noite de anteontem, no Jardim Planalto, zona leste de São Paulo.

Em seu artigo, Eliane conclui, após listar alguns dados sobre a violência no país: “Falta, portanto, muita coisa para o Brasil ser toda essa cocada preta: educação, saúde, produtividade, inovação, combate à corrupção, distribuição de renda. E, enquanto os brasileiros não pararem de se matar à toa, é melhor deixar o oba-oba para a mídia estrangeira e pensar o estágio e as fraquezas do país com um mínimo de racionalidade”. Ela está coberta de razão, e não vejo qualquer pendor partidário na sua análise (acho mesmo que se tivéssemos um outro partido no poder a realidade seria a mesma).

O crescimento inequívoco do Brasil, sem dúvida positivo e necessário, não vem acompanhado de um avanço significativo na nossa cidadania. É mais ou menos o que acontece nas outras nações emergentes, China, Índia e Rússia, que não conseguem estancar a pobreza extrema nem anomalias como o trabalho semi-escravo, máfias incrustadas em diversos setores da economia e castas rígidas que inviabilizam a mobilidade social. Porém, mais do que a corrupção endêmica, entraves burocráticos insolúveis e saúde e educação públicas à beira da falência, nossa enfermidade social mais grave é outra: a propensão atávica à violência. O Brasil é um país minado pela barbárie.

E é aí que entra em cena o segundo texto da Folha, que desvela o que somos de verdade, para além dos clichês do povo cordial e do país tropical abençoado por Deus: arrastado para fora do ônibus por cerca de 40 pessoas, que estavam em um baile funk próximo ao local do acidente, o motorista Edmilson dos Reis Alves, de 60 anos, teve o crânio esmagado por extintores de incêndio. O ônibus que dirigia foi alvejado por pedras enormes, que por pouco não atingiram os passageiros. A reportagem de André Caramante e Fernanda Barbosa revela que Edmilson era um profissional exemplar, que não bebia e tinha acabado de deixar a esposa que viajava com ele perto da casa dos dois, a apenas dez minutos do local do acidente. A polícia ainda vai investigar se ele morreu do mal súbito ou das pancadas.

Não interessa. Um linchamento como esse na maior cidade do Brasil – episódio corriqueiro, como os que lemos todos os dias nos jornais – expõe a fratura moral de uma sociedade em declínio. Uma sociedade fortemente armada, brutalizada e sem escrúpulos, que da classe A à classe Z fabrica cidadãos dotados de um senso de justiça enviesado e incapazes de coexistir com regras básicas de convívio. É nesse habitat inóspito que eu, você e pessoas como Edmilson vivemos e tentamos não morrer de morte matada. No caso dele, em vão.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O mesmo amor duas vezes



Outro dia, conversando com um grande amigo numa noite de domingo, em um barzinho de frente para o mar, ele me falou da impossibilidade de reviver um amor perdido e reencontrado. Havia desalento e alguma resignação em seu rosto, e ao ouvi-lo remoer as cinzas do passado e degustar o sabor amargo do presente, eu me lembrei de Scott Fitzgerald. Ou melhor: dos amores impossíveis dos contos de Scott Fitzgerald. Scott é sob qualquer aspecto um de meus escritores favoritos, e nem sei se gosto mais dos seus contos ou de seus romances. Ele canta a dissipação das grandes paixões, o hedonismo da era do jazz substituído pela melancolia da crise de 29, o desencanto de uma geração que teve – e perdeu – tudo.

No início do ano, eu retirei da estante o livro 24 Contos de Scott Fitzgerald, lançado há alguns anos pela Companhia das Letras com tradução de Ruy Castro (aqui tem uma resenha que escrevi à época do lançamento). Senti um prazer dolorido ao reler aquelas histórias de beleza cadente, fadadas inevitavelmente ao malogro, seja pelo poder destrutivo dos vícios (Scott legou o próprio alcoolismo à maioria dos seus personagens masculinos) ou pela incapacidade que temos de assumir um amor avassalador com toda a plenitude que ele exige.  

Há, em um dos contos, uma frase que talvez tenha provocado em mim a lembrança do livro enquanto conversava com meu amigo: “Há todas as espécies de amor neste mundo, exceto o mesmo amor duas vezes”. Para Scott, é inútil reviver aquilo que fomos um dia, até porque as pessoas mudam, as cidades mudam, os sentimentos mudam. Meu amigo deve ter plena consciência de que, no homem que ele é agora, há muito pouco do que ele foi há 20 anos. São, um e outro, estranhos que não se conectam nem se comunicam, separados por compartimentos estanques de memória e esquecimento.

O fato é que qualquer amor que resgatamos de um tempo até então enterrado e posteriormente exumado não é o mesmo amor de antes, embora também não seja um amor diferente. É como um morto-vivo, um zumbi de aparência ambígua, que nos sorri com uma face e nos amedronta com a outra. Cabe a nós escolher qual delas será revivida em nosso presente. E, se revivido, como ele pode conviver com aquilo que nós e o outro nos tornamos, incluindo aí casamentos, filhos, emprego, pressão social e certa letargia de ter que largar tudo isso para encarar uma aventura de êxito incerto.

Bem, em tempos de sexo casual e casamentos mais casuais ainda, talvez eu esteja me portando como um romântico tolo, falando de um sentimento em extinção. O mesmo sentimento que em outros tempos fez o jovem Werther do livro de Goethe abandonar a vida, inspirando na vida real muitos outros suicídios na Alemanha do século 18. Mas, naquela noite de domingo, eu percebi uma centelha, uma tempestade por trás da calmaria, como o silêncio que precede o ataque de um cachalote. Ali estava, à minha frente, uma manifestação inequívoca de amor em estado bruto. Desgastado pelo avanço do tempo, esmaecido por décadas de hibernação, mas nem por isso menos amor.  

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A melancolia do fim



Na semana passada, um asteróide passou muito perto da Terra, chegando a ficar mais perto de nós do que a Lua, a apenas 325 km de distância. Do tamanho de um porta-aviões, o asteróide teria feito um estrago danado se caísse por aqui: poderia abrir uma cratera de 6,4 km de diâmetro e 528 metros de profundidade. E se tivesse caído no oceano, teria provocado um tsunami com ondas de até 21 metros. Nada, porém, que acabasse com a vida no planeta. Mas convém lembrar que uma chuva de meteoros é a hipótese mais aceita pelos cientistas para o desaparecimento dos dinossauros – e o percurso dos dinossauros pela Terra foi muito mais extenso do que a nossa humilde aventura pelo planeta, ainda em andamento. Daí que não devemos ficar tão tranqüilos quanto a uma vida eterna por aqui.

Quando a natureza se manifesta – e ela tem se manifestado com incômoda freqüência nos últimos anos – vemos o quanto é cruel. Terremotos e tsunamis varrem cidades inteiras, levando sem nenhum tipo de compaixão seletiva homens, mulheres e crianças. Não existe piedade, apenas o acaso brutal e sem sentido. A natureza do universo não é muito diferente e poderia, quem sabe, nos presentear com a aproximação de um planeta gigantesco na órbita da Terra. É o que se vê em Melancolia, a parábola niilista de Lars Von Trier sobre o fim do mundo. Não o fim do mundo como o conhecemos, mas o fim do mundo mesmo: a Terra sendo engolida por um astro muito maior, levando a tiracolo tudo que somos nós: mamíferos, aves, insetos, flores e algas marinhas, mas também oceanos, cordilheiras e florestas.

Não sei se foi essa a intenção de Lars Von Trier, mas Melancolia faz também uma crítica à incapacidade que temos de compreender nossa própria insignificância. Na primeira parte, um casamento caríssimo celebra um amor inexistente, que não se consuma nem se justifica. Na segunda, já com o planeta gigante se aproximando inexoravelmente, o que se vê é um microcosmo da humanidade encerrado num casarão isolado, à espera da morte ou de uma improvável redenção. Em dado momento, Claire (uma das duas principais personagens femininas, ao lado de Justine) se lamenta: “Mas meu filho não vai ter onde crescer”. É uma afirmação puramente egocêntrica, que não dá a medida do que a espera. Não é apenas um lugar onde o filho poderia crescer que será eliminado, mas sim o próprio significado das palavras “filho”, “onde” e “crescer”.

A destruição da Terra representaria, portanto, um fim absoluto. Não o meu ou o seu fim, mas o fim de toda uma concepção de existência, que gerou romances, sinfonias, enciclopédias, cidades e sonhos, mas também genocídios, massacres e muitas outras variações da barbárie (afinal, como diria Justine, “a terra é má”). Mas ainda estou sendo por demais antropocêntrico na minha avaliação: a Terra, ao longo de sua história, gerou muito mais maravilhas do que apenas a humanidade, que habita o seu epílogo. E quanto ao que veio antes de nós? E a saga dos seres unicelulares se reproduzindo e se perpetuando em ambientes inóspitos? E as sequóias desafiando a eternidade com seus dois mil anos de vida? E os próprios dinossauros, com a força bruta que os tornava invencíveis, como às vezes nós, humanos, julgamos ser? Seria, de qualquer forma, um fim melancólico e até injusto. Bem ou mal, mesmo com todo o caos e toda a violência, nosso planeta representa uma centelha de inquietação. Um clarão de som e fúria, em meio à monotonia eterna e escura de um universo que se expande em direção ao nada. 

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Lugar acolhedor




Não lembro quem escreveu que nunca devemos voltar aos lugares onde fomos muito felizes. Correríamos o risco, dessa forma, de dissolver uma valorosa sensação de nostalgia, encerrada em algum canto do nosso imaginário, que tem como matérias-primas um vago sentimento de felicidade e imagens devidamente enevoadas pelo tempo. Acredito que deve existir algo semelhante em relação aos livros que lemos e amamos, e que guardamos na memória como pequenos diamantes de celulose. Eles seriam, portanto, muito mais do que um volume esquecido na estante. Talvez algo como um território acolhedor, que visitamos há muito tempo e que deixou em nós lembranças imperecíveis, como instantâneos de uma época bem-vivida.

Tudo isso me veio à mente hoje, após uma amiga comentar no Facebook que se sentia uma personagem de Cem Anos de Solidão, por conta das chuvas torrenciais que não abandonam Salvador (numa alusão aos anos de chuva ininterrupta que assolaram Macondo na obra de Gabriel García Márquez). Sim, Cem Anos de Solidão. Difícil encontrar outro romance que personifique melhor a imagem de um lugar acolhedor. Ele é muito mais do que um livro, assim como Macondo é mais do que uma cidade e José Arcádio, Ursula Iguarán, Remédios, Amaranta, Rebeca, Pilar Ternera e Aureliano Buendía (os tantos que habitam aquelas páginas) são mais do que personagens.

Lembro de ter lido o livro de Gabo pela primeira vez aos 15 anos, logo depois de abandonar com tristeza O Amor nos Tempos do Cólera, outra obra inesquecível do colombiano. Voltei a ele umas duas ou três vezes em um espaço relativamente curto de tempo. O certo é que há uns 20 anos não volto lá. A edição que tenho, muito simples e com as páginas quase amarronzadas pelo tempo e o manuseio, só é tocada quando preciso rearrumar minha estante para a inclusão de novos volumes. Um tesouro velho e esquecido, pelo qual pouquíssimas pessoas pagariam mais do que um ou dois reais. Mas nem por isso um tesouro menor. Não esqueço jamais o parágrafo inicial: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía se lembraria do dia em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Não deve ser exatamente desse jeito, mas é algo assim.

O fato é que hoje senti muita vontade de voltar a esse lugar onde fui muito feliz. Rever, agora com os olhos de homem maduro (ou nem tanto), toda aquela gente que eu adorava. Mas tenho receio de romper a tímida membrana de nostalgia que o envolve e me decepcionar com o reencontro. Perceber que os personagens envelheceram mal, tornaram-se imperfeitos – ou serão eles que enxergarão em mim um estranho, intruso em território explorado um dia por um outro leitor, muito parecido comigo, mas sem a mesma capacidade de vivenciar o delírio silencioso? Não sei. Talvez seja mesmo melhor deixá-los em paz, dormindo serenamente naquela cidade de papel amarronzado, imprensados entre outros livros do homem que os criou.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

"Indignados"




Nos últimos dias, o assunto mais citado na imprensa e nas redes sociais foi o câncer de Lula. Talvez nem pela doença em si, mas sim pelos comentários irados, preconceituosos e consequentemente estapafúrdios que proliferaram como um tumor maligno por vários territórios da tal aldeia global a que chamam de internet. Um dos territórios mais afetados foi a coluna de Gilberto Dimenstein na Folha de S.Paulo. Tanto que ele resolveu escrever um novo texto, dias depois do primeiro, para se manifestar: "Senti um misto de vergonha e enjoo ao receber centenas de comentários de leitores para a minha coluna sobre o câncer de Lula. Fossem apenas algumas dezenas, não me daria o trabalho de comentar. O fato é que foi uma enxurrada de ataques desrespeitosos, desumanos, raivosos, mostrando prazer com a tragédia de um ser humano. Pode sinalizar algo mais profundo."

O mais grave nessa doença virtual - mais até do que os ataques a Lula e ao que ele representa - é a capacidade que uma parcela significativa da população possui de escolher sempre os alvos mais disparatados para a sua indignação. São milhares de pessoas gastando seu tempo para vociferar virtualmente contra um ex-presidente, assim como vociferam (invariavelmente em letras maiúsculas e invariavelmente em português trôpego) contra um participante de reality show, uma prova anulada do Enem ou um juiz que prejudicou seu time. O ódio se materializa em ofensas estúpidas a jornalistas, que agora possuem um canal direto com seus "leitores".

O que mais me intriga nisso tudo é: por que esse ódio indignado nunca se lança com a mesma virulência contra assuntos muito mais graves? Estou me referindo a um fato que considero gravíssimo, e que pelo jeito não sensibilizou as manadas de indignados virtuais: Marcelo Freixo, deputado estadual do Rio de Janeiro pelo PSOL, está deixando o país após sofrer sérias ameaças de grupos de extermínio. Para quem não sabe (eu não sabia), Freixo presidiu a CPI das Milícias na Assembléia Legislativa do Rio, que indiciou mais de 200 policiais e políticos ligados diretamente ao esquema de extorsão, assassinatos e tudo aquilo que eu e mais 12 milhões de pessoas vimos em Tropa de Elite 2. Não por acaso, Freixo foi consultor do filme de José Padilha. Sua partida para lugar incerto é fruto de algo dolorosamente banal: ele não confia em quem tem a obrigação de protegê-lo. Daí ter aceitado um convite da Anistia Internacional para passar um tempo na Europa com a família. Marcelo não é bobo. Sabe o que acontece com quem se levanta contra o poderio das milícias no Rio.

A juíza Patrícia Acioli, que pôs um montão de gente barra pesada na cadeia, foi assassinada há apenas dois meses quando chegava em casa. Patricia não tinha proteção, carro blindado ou qualquer obstáculo à ação dos executores que, agora se sabe, são policiais militares: o tenente Daniel dos Santos Benitez Lopes e os cabos Sérgio Costa Junior e Jefferson de Araújo Miranda. Sim, policiais militares. Algo tão corriqueiro que sequer nos damos conta do quanto é absurdo e inadmissível. Marcelo Freixo e Patrícia Acioli iniciaram uma luta contra um inimigo praticamente invencível. Afinal, policiais foram criados para nos proteger, e sabem como a engrenagem funciona - e quando não deve funcionar. Aliados a políticos e a apresentadores de programas sensacionalistas na tevê, eles se tornam onipresentes, onipotentes e oniscientes.

Com tudo isso posto, onde entra a tal indignação dos brasileiros? É tão inflamada a torcida para que o carcinoma na laringe do ex-presidente ganhe a dimensão de metástase que não há saliva suficiente para ser derramada num hipotético protesto contra os superpoderes de uma bandidagem sem freios. Estulta, arrogante e truculenta, uma horda numericamente expressiva de brasileiros se engaja em causas equivocadas, derramando pelos becos do mundo virtual sua concepção de vida tosca, sua aversão à vida em sociedade, sua sordidez bairrista e demófoba. Estamos nos apequenando como sociedade e como nação, batendo recordes de mortes no trânsito e assistindo com certa conivência as cidades se brutalizarem. Enquanto isso, quem pode fazer a diferença precisa escolher entre o cemitério e o aeroporto, rumo ao exílio. Ou às vezes nem isso, como provam os 21 disparos que fizeram com que a juíza Patrícia só pudesse optar pela primeira alternativa.