quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Mea-culpa



Como repórter de cultura de um jornal daqui de Salvador, eu todos os anos era escalado para cobrir uma das noites do principal festival de música realizado na cidade. Ia de má vontade e cara fechada, pois me sinto intimidado no meio de multidões e não aprecio a quase totalidade dos gêneros musicais presentes no evento. Mas também trabalhava contrariado porque o festival era organizado pela rede de comunicação à qual o jornal pertence, e as matérias tinham invariavelmente que tecer elogios eloqüentes às atrações e à reação do público. Paciência. Era o meu trabalho, ganhava para isso e precisava do salário no fim do mês para pagar as contas.

Numa dessas noites, fui no carro do jornal com o fotógrafo e o motorista e encontramos a avenida onde o evento acontecia totalmente congestionada. As horas andavam, mas nós, não. Depois de um tempo, o motorista conseguiu fazer o retorno e pegar um caminho alternativo, que mergulhava nas entranhas de Salvador, longe dos cartões-postais que a eternizaram. O caminho percorreu uma via conhecida como Estrada Velha do Aeroporto. Em dado momento, precisamos pegar um atalho numa baixada, por uma estradinha de barro sem qualquer iluminação, conhecida popularmente como “estrada da desova”, por ser um local onde os grupos de extermínio costumam depositar o fruto do seu trabalho.

Definitivamente, estava em outro mundo, e ele me amedrontava. Passada a estrada da desova, voltamos a outro trecho da Estrada Velha, e lá nos deparamos com um monte de entulho ocupando toda a pista e à margem dezenas de pessoas gritando e protestando. Era uma cena acima de tudo aterradora: homens, mulheres e crianças ocupando a rua para protestar contra a falta de luz, que já durava dois dias. Eles gritaram para nós dizendo que não deixariam ninguém passar. Não foram agressivos, longe disso. Pareciam tão amedrontados quanto nós dentro do carro. Ou pelo menos quanto eu que, ao contrário do motorista e do fotógrafo, não tinha o costume de cobrir as ocorrências policiais que proliferam como mosquitos da dengue nessa parte da cidade. Lembro que o motorista tentou forçar a passagem, jogando o carro contra os entulhos, e que eu coloquei a mão em seu ombro e pedi que parasse.

Bem ou mal, aquelas pessoas nos consideravam seus aliados. Acreditavam, provavelmente, que estávamos ali para cobrir o evento deles. Mas eu não exerci o meu faro de repórter nem vislumbrei ali uma matéria de capa. Enxerguei apenas uma das faces de uma desgraça cotidiana que não respingava em meus pés. Fiquei paralisado observando aqueles rostos no escuro, rostos negros com olhos enormes que evocavam raiva, impotência e desespero. Até que enfim demos meia-volta e percorremos um caminho ainda mais longo para chegar ao festival. Chegamos tarde, já no terceiro ou quarto show, não lembro agora. Entramos e me deparei com o Jota Quest cantando para uma multidão ensandecida. Aquilo me parecia irreal. Aquele som altíssimo, aquela gente toda se esbaldando e, pairando sobre tudo, luz. Muita luz. Megawatts para dar e vender. Telões de alta definição e holofotes superpotentes permitindo a todos ver o show e a si mesmos com absoluta nitidez.

Não lembro do que escrevi no dia seguinte. Certamente uma reportagem patética recheada de elogios e declarações bobinhas dos artistas que entrevistei. Não acrescentei nenhuma linha sobre o episódio da Estrada Velha do Aeroporto, e acho que comentei apenas com poucas pessoas o que tinha acontecido. Afinal, aquele não era o meu mundo, e logo eu poderia voltar às críticas de filmes e livros que tanto gostava de escrever. Aquelas pessoas anônimas prosseguiriam no mais absoluto anonimato, como continuam até hoje, numa cidade na qual um terço da população vive em favelas e um segundo terço habita construções precárias em bairros precários.

O que posso dizer? Que fui covarde? É claro que fui covarde. Claro que poderia ter feito algo, embora não saiba bem o quê. Talvez saltar do carro, ouvir aquelas pessoas, anotar as suas declarações, entender as suas motivações e, ao final, escrever uma puta reportagem, podendo até recorrer às técnicas do New Journalism de Tom Wolfe e Gay Talese. Mas não: me limitei a um textinho recheado de frases cheias de alegria e alto astral. Coisas como “uma festa da diversidade” e “muito som e alegria para todos os gostos”.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Franco-atirador



Sou um monoglota. Embora consiga me expressar com razoável destreza em inglês e espanhol, não domino esses idiomas. Apenas arranho a superfície de suas sintaxes e seus intrincados labirintos fonéticos. Sei também que “je t'aime” significa “eu te amo” em francês e que “salaam aleikum” é uma saudação árabe que quer dizer “que a paz esteja com você”. Com esse conhecimento precário, acho que consigo me virar em boa parte do mundo. O mais difícil, no meu caso, é ser um monoglota comportamental. Meu limitado arcabouço de gestos, atos e opiniões me impede de compreender o meio que me cerca.

Tento, com a persistência dos analfabetos, compreender as ações e reações de pessoas que transitam diariamente perto de mim, seja no trânsito, no supermercado ou em algumas rodas de conversa. Gente que em muitas ocasiões se manifesta no volume máximo, mas da qual sou incapaz de extrair qualquer coisa. Ou, como diria Humberto Gessinger: “Eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada”. É como se eu fosse um exilado na cidade onde nasci, apartado dos outros, vivendo numa bolha com as poucas pessoas que gosto, manifestando intimamente um alívio quando entro em casa e tranco a porta do apartamento. Aí sim estou em minha comunidade, meu gueto, meu habitat.

Na rua sinto um pouco de medo, como um angolano recém-chegado a Lisboa, um turco a Berlim ou um haitiano ao Acre. Sem perceber, me tornei um imigrante indesejado, um refugiado de guerra, um sujeito facilmente reconhecido como vindo de outras paragens, seja pelos gestos ou pelo linguajar. Não pertenço ao tempo que habito, muito menos ao espaço que habito. Às vezes, penso que uma mudança me faria bem. Quem sabe seria capaz de encontrar mais pessoas falando o meu idioma em outra cidade, ou até em outro país. Mas acho que não. O ser estrangeiro é uma condição essencial do meu temperamento, da minha formação, do meu jeito ensimesmado. Sou como um franco-atirador desarmado, observando do alto de um campanário as trincheiras lá embaixo.

Pensando bem, talvez a chave esteja justamente nessa palavra: desarmado. Fui uma criança desarmada, um adolescente desarmado e hoje sou um adulto desarmado, rodeado por fuzis, pistolas e escopetas – metaforicamente e literalmente falando. Nesse sentido, só poderia mesmo ser um monoglota, incapaz de entender a linguagem de sinais que verbaliza a indiferença, a brutalidade gratuita, o salve-se quem puder. Nem melhor, nem pior, apenas alguém inoportuno. O carinha chato numa roda de amigos que não sabe os códigos de conduta ou os motivos que levam ao riso ao fim da piada.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Viagem à semente




A lembrança mais remota que carrego comigo é uma imagem do meu irmão recém-nascido na cama dos meus pais. Recordo vagamente a madeira clara da cabeceira e a roupinha branca que ele usava. Pela nossa diferença de idade, eu devia ter uns dois anos na época. Guardo também imagens enevoadas da minha primeira escola e da cama de ferro, dessas de hospital, onde minha avó materna passou seus últimos dias, embora não consiga lembrar dela, apenas da sua presença na casa. A partir daí, começam a aparecer filmes curtos com começo, meio e fim, e não apenas flashes isolados e sem sentido. Fico intrigado com o fato de não lembrar de nada antes dos dois anos de vida, e muito menos dos nove meses em que permaneci imerso numa pequena caverna escura e aconchegante. É um período relativamente longo, sobre o qual paira apenas breu.

Mas, por menos que lembremos de quem fomos quando bebês, há muito da nossa infância mais remota nos adultos em que nos convertemos. Carregamos centelhas sensoriais que dizem muito do ambiente em que vivíamos, do amor que recebemos (ou não) e da avalanche de sentimentos passada via cordão umbilical por nossas mães. Muitas dessas centelhas permanecem, por mais que nossa consciência seja incapaz de traduzi-las em algo racional. É como mostra o filme O Dia em que Eu Não Nasci (que ainda não tive oportunidade de ver), sobre uma mulher alemã que, ao fazer uma conexão inesperada no aeroporto de Buenos Aires, ouve uma mãe argentina entoando uma canção de ninar para seu bebê e reconhece de imediato essa canção, mesmo não sabendo falar espanhol. A partir daí, ela investiga a sua origem e descobre que é filha de um casal assassinado durante a ditadura militar argentina e que toda a existência que levou até então estava assentada numa mentira.

Voltando às lembranças, minha filha diz que sua primeira recordação sou eu trocando sua fralda, talvez porque tenha feito isso raras vezes quando ela era bebê. Lembra também de meus pais fazendo com ela uma brincadeira chamada Maria Cadeira, possivelmente a única imagem que guarda com certa nitidez do avô paterno, morto quando ela tinha três anos. É uma pena, portanto, que minha filha não consiga lembrar da primeira vez em que a aninhei em meus braços com todo cuidado, para que parasse de chorar, e ela adormeceu quase de imediato. Ou da noite em que assistimos juntos ao filme Procurando Nemo. Desta vez, fui eu que chorei, sentindo a falta do meu pai e tentando esconder os soluços dela, que me abraçou distraída, como se me acalentasse, e disse: “Papai, eu te amo”. Isso diz muito sobre minha filha e talvez mais ainda sobre mim, já que a primeira infância dos filhos é antes de tudo um território dos pais.

Não sei onde quero chegar com todas essas memórias e reflexões sem direção. Talvez esteja só tateando no escuro, em busca do que existe de mais remoto em mim, para compreender os sentimentos que me atravessam desde o momento em que me percebi como gente. Ou quem sabe é só uma necessidade de entender o meu assombro diante do absurdo da existência, não apenas a minha, mas a de todos nós. Tão ou mais assustadora que a morte é a criação de uma nova vida. Uma célula que se multiplica ao infinito dentro de outro corpo até se expandir e ganhar o mundo com lágrimas, gritos, espanto e uma absoluta incompreensão de si mesma e de tudo que está em redor. 

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Faíscas



Quando um homem de 41 anos, pai de três filhos, morre assassinado, nós nos sentimos compelidos a vociferar contra a violência urbana crescente e o excesso de armas em circulação no país. Quando essa pessoa morre vítima de um acidente de carro, nós deploramos as condições das estradas, a irresponsabilidade dos motoristas alcoolizados e a permissividade das leis. Mas em quem devemos pôr a culpa no caso de uma morte causada por um acidente vascular cerebral? Contra quem devemos direcionar nosso ódio e nossa impotência?

Nas últimas horas do último dia de 2011, fiquei sabendo por meu irmão da morte de Daniel Piza. Aquilo me chocou e ficou remoendo aqui dentro por dias, enquanto me lançava aos prazeres de uma praia distante com minha família. Na mesma hora, entrei na internet e dei de cara com a foto de Piza sorrindo e as informações sobre a sua morte. Senti uma contração no peito e vontade de chorar, não exatamente por ser ele, mas por ser um homem da minha idade, jornalista como eu, pai de família como eu e um apaixonado por cultura como eu (há diferenças também, é claro, já que estou falando de alguém que era colunista do Caderno 2 de um dos melhores jornais do país e autor de mais de uma dezena de livros).

Nem sempre concordava com o que Daniel Piza escrevia e confesso que às vezes o achava meio pedante, sobretudo quando emulava Paulo Francis, um de seus principais inspiradores. Mas sempre lia o seu blog e sua coluna no Estadão. Era uma fonte de informação cultural muitíssimo relevante numa imprensa cada vez menos pujante nesse quesito. Entrei no seu blog após sua morte e reli seus últimos textos. O derradeiro post informava: “Parada de fim de ano. Volto no dia 11. Feliz 2012 para todos nós”. Essa frase foi escrita no dia 28 de dezembro. Dois dias, portanto, antes da sua morte. Ao que parece, estava claro para Piza que não havia qualquer problema com a sua saúde, tanto que foi passar o fim de ano com a família e os pais no interior de Minas. Mas, enfim, o “Feliz 2012” começou e terminará sem ele.

O que mais me deixou consternado na morte de Piza foi a sua absurda incongruência. Já vi pessoas muito mais jovens morrerem de forma também abrupta antes, mas algo nessa história me tocou particularmente. Não faz sentido. Mas, afinal, o que faz sentido? Volto à pergunta do início: a quem culpar por uma vida tragada em seu auge? Os religiosos têm ao seu dispor uma resignação obstinada, mas e quanto aos ateus? Para mim, ficou ainda mais clara a nossa absoluta vulnerabilidade, a minha em particular. O corpo que habito e que é tudo de mim hoje me parece ainda mais frágil, com seus ossos, órgãos, músculos e tecidos combalidos pelo sedentarismo trabalhando precariamente para me manter vivo. Uma máquina que pode falhar qualquer dia e para a qual não existe um mecânico especializado capaz de fazê-la funcionar de novo. Nesse ponto, somos um pouco formigas, amebas, peixes de aquário. A existência, que à primeira vista parece um incêndio arrebatador e quase incontrolável, é na verdade pouco mais que uma faísca, uma centelha, uma vela acesa ao vento.