domingo, 15 de julho de 2012

O princípio e o fim




Às vezes, passamos anos esperando que algo aconteça e, quando ele finalmente chega até nós, nos damos conta de que veio tarde demais. O impacto que poderia causar se apresenta amortecido, convertido em um ligeiro sussurrar sobre nossas reminiscências, meio que dizendo: “Lembra de quem você era?”. Acho que foi mais ou menos isso que senti quando deixei o cinema após assistir a Na Estrada, filme de Walter Salles baseado no clássico beat On the Road, de Jack Kerouac. Não é um livro qualquer, ao menos para mim. Como já escrevi algumas vezes aqui no blog, On the Road foi uma centelha que durante anos povoou o meu imaginário. Ele estava lá aos 17 anos, quando minha adolescência se liquefazia numa zona permanente de desconforto e inadequação. E, três anos mais tarde, foi o guia que me levou a paragens distantes, me permitindo vivenciar experiências que moldaram parte importante da minha personalidade.

Dito tudo isso, a principal substância que posso extrair da experiência de ter assistido a Na Estrada – e seria impossível viver essa experiência sem qualquer envolvimento afetivo – é a saudade de um tempo particularmente feliz da minha vida. Mas um tempo que, por outro lado, ficou definitivamente para trás, como uma antiga paixão a quem reencontramos e nos damos conta de que a brasa virou cinza. Posso me despedir dela agora e está tudo bem, cada um segue o seu caminho sem mágoas ou feridas mal cicatrizadas. Muita coisa veio à tona. Percebi, nas falas em off que reproduziam trechos do romance, o quanto tentei escrever como o velho Jack naquela época. Diversas cenas me transportaram para o passado e provocaram uma nostalgia aconchegante, como uma casa de avós queridos à qual voltamos depois de muito tempo: a vastidão sem fim, as paisagens que se sucedem à margem das rodovias, a névoa do início da manhã, o tempo sem pressa, a solidão avassaladora e uma valorosa sensação de liberdade.

Mas o fato é que Na Estrada produziu em mim mais distanciamento e contemplação do que envolvimento e encanto, e continuo sem saber se isso é um defeito do filme ou um efeito perverso da passagem do tempo sobre os meus ingênuos ideais dos 20 anos. Jovens praticando pequenos delitos, transando de forma quase desesperada e se drogando com benzedrina dizem muito pouco a mim hoje. Senti falta, também, de algo que me fascinava no livro: o culto às figuras sagradas, aos vagabundos sem nome, aos americanos comuns cheios de bons sentimentos e mesmo aos companheiros de estrada que borrifavam vida por todos os poros e partiam em busca da própria verdade. Onde foi parar o senso de urgência, a necessidade vital de expansão para além dos próprios limites? Onde foram parar o Paradise e o Dean que nos inspiraram a pedir caronas e viajar em boléias de caminhão país afora?

Um vácuo existencial parece mover os personagens. Uma sensação de vazio que em alguns momentos ultrapassa a tela e atinge o espectador, como me atingiu. Depois de pensar um pouco, enquanto dirigia de volta para casa, me dei conta de que a narrativa pareceu reproduzir na tela não o livro de Jack Kerouac, mas sim o processo criativo e as experiências que permitiram a ele escrever o livro. Como uma espécie de making of, um On the Road lido retrospectivamente, através do qual é possível perceber os 55 anos que separam o livro do filme. Dean e Marylou parecem se mover permanentemente em busca de algo que não conseguimos apreender. Passam a impressão de ansiar por uma vida estável, careta, a qual são incapazes de viver em plenitude. A pergunta é: o livro era assim? São 20 anos que me separam das seguidas leituras de minha bíblia querida de juventude, e precisaria voltar a ela para conferir.

Tiro o livro da estante e o folheio com cuidado e carinho. O mesmo velho e carcomido volume publicado pela Brasiliense que levei algumas vezes comigo para a estrada, onde relia os trechos preferidos enquanto distâncias enormes eram consumidas em fogo brando. Leio o início e percebo que o roteirista adulterou o conteúdo para estabelecer um paralelo entre os dois protagonistas através dos efeitos da ausência paterna em ambos, mas nem sei se isso faz alguma diferença. Folheio mais um pouco e em seguida fecho o livro. Lembro agora de ter ficado feliz ao ouvir de novo nomes esquecidos, como Ed e Galatea Dunkel, Carlo Marx, Old Bull Lee e tantos outros personagens que povoaram o meu imaginário juvenil. Lembro também que me emocionei ao ouvir, na voz de Sam Riley, o comovente trecho final do livro, que reli tantas vezes e que ouvi outras tantas recitado pelo próprio Kerouac. Havia, naquele final, um esboço do que o filme de Walter Salles poderia ter sido e não foi: um divisor de águas na trajetória de milhares de jovens atônitos, inseguros e loucos por uma aventura. 

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Tempos duros




“As pessoas não eram diferentes naquela época do que sempre foram e sempre serão. Garotas ficam com o coração partido. Homens e mulheres sofrem sozinhos pelas próprias escolhas que fizeram. E garotos muito confusos, cheios de medo, de amor e de coragem, crescem furtivamente na calada da noite”. Está lá, no final de um episódio particularmente comovente de Anos Incríveis, uma série de tevê que continuo adorando, por mais que os anos passem, e que voltei a assistir agora há pouco. Há muito de mim em Kevin Arnold, o garoto sensível que cresce em um subúrbio norte-americano tentando tatear o mundo à sua volta. Um mundo que mudava com a velocidade de um Sputnik cruzando os céus naquela década de profundas convulsões sociais, comportamentais e políticas: os anos 60.

Vejo Kevin e vejo a mim mesmo, um menino nascido de tempos duros, buscando vislumbrar para além do porto seguro e enxergando perplexo a brutalidade do mundo lá fora. Um menino ensimesmado, filho de pais batalhadores e amorosos, que tentavam abarcar para mim, dentro de suas próprias limitações, a complexidade de existir. Sou acima de tudo um homem do século 20. Um herdeiro da Guerra Fria, do golpe militar, de um país que enfim deixava de ser rural para abraçar sem amarras a urbanidade, com suas avenidas repletas de Fuscas, Brasílias e Corcéis. Seus terrenos baldios a perder de vista que aos poucos se convertiam em favelas. Seus jovens casais que fumavam Hollywood mas não encontravam o sucesso. Sou um homem nascido em 1970, apenas 25 anos depois de encerrada a guerra que dizimou o continente responsável por gestar o que conhecemos por civilização. Sim, nasci apenas 30 anos depois da Alemanha nazista. E apenas 20 anos antes de Ruanda, Sérvia, Serra Leoa.

Nasci há tão pouco tempo e por vezes me sinto um velho. Afinal, os tempos estão mudando, como cantou Bob Dylan em The Times they’re a-changing, que ouço agora enquanto bebo um vinho e tento uma transmutação rumo ao meu paleolítico particular. Hoje, como também disse Dylan, criticamos o que não conhecemos. É nítida a nostalgia, a saudade de outros tempos, embora esses tempos não tenham sido necessariamente idílicos. Mas ao menos havia uma redoma, um escudo protetor. Sou fruto de tempos tristes, e a eles me agarro como à última madeira flutuando à minha frente, como se o futuro fosse tóxico e o presente, incompreensível.

Não sei onde quero aterrissar. Talvez tudo se resuma aos velhos questionamentos que insistem em nos fustigar desde eras imemoriais: de onde viemos, quem somos, para onde vamos? Gerações vão se suceder, nações vão surgir e submergir e nós continuaremos crescendo furtivamente na calada da noite, com os olhos abertos, tentando compreender o que fazemos aqui, sem que qualquer epifania venha nos trazer consolo ou redenção. Está tudo acabado agora, Baby Blue.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Contra a multidão




Algum tempo atrás, conversava com dois casais de vizinhos do prédio onde moro. Papo descontraído e despretensioso, que em dado momento enveredou para as mazelas cotidianas que enfrentamos em nossa cidade e em nosso país. Comentei que vivíamos sob vários aspectos uma época de degeneração social. Um dos meus interlocutores complementou: "O maior problema são esses gays. Esse negócio de gay em todo lugar, querendo casar, fazer passeata". Aquilo me assustou, mas em seguida, a moça do outro casal confirmou o diagnóstico: "É isso mesmo. Uma coisa horrível. Aqui mesmo no prédio tem duas. Outro dia peguei elas se abraçando na garagem". Tentei argumentar, dizendo que não me referia a isso quando falava em degeneração social, acrescentando que para mim o homossexualismo estava longe de ser um problema, tinha amigos gays, etc. A moça respondeu: "Tenho medo por minha filha, de ela crescer vendo essas coisas".

O clima pesou um pouco. Naquele momento, percebi que a minha relação com os casais deveria prosseguir no mesmo grau de superficialidade em que se mantivera até ali. Um amistoso "boa noite, tudo bem com você?" na porta do elevador e vida que segue. Ressalto que aceito outras visões de mundo, mesmo que sejam radicalmente opostas à minha. Aceito até certo ponto os preconceitos alheios, mesmo porque tenho também os meus, que carrego como um estorvo. Mas havia, embutida naquelas frases, algo mais grave: uma não-aceitação de outros seres humanos. Não se tratava apenas de não gostar de determinado comportamento, mas sim de repudiar a existência de quem pratica tal comportamento. Pensei de imediato na Alemanha nazista, onde as pessoas eram mortas não por pensarem, sei lá, que o nazismo era uma estultice qualquer que não deveria ser levada a sério. Eram mortas porque existiam.

Esse tipo de pensamento expelido durante a conversa poderia ser apenas resultado de uma forte influência religiosa ou de uma formação moral um pouco mais rígida. Poderia ter nascido, digamos, da aversão aos trejeitos festivos que são o clichê comportamental dos gays. Até aí tudo bem. O problema é que esse tipo de pensamento tem servido para criar um certo conformismo diante de episódios chocantes. O último deles foi a morte de um rapaz de 22 anos, que estava abraçado ao seu irmão gêmeo e foi espancado por um grupo que os confundiu com um casal gay. Quando um fato como esse acontece e acontece com frequência estarrecedora , há algo de muito errado na sociedade. Uma sociedade que, em sua maioria, pensa como os meus vizinhos. E que, em uma parcela bem mais reduzida, age violentamente com base nas mesmas premissas.

É sintomático que o acirramento das manifestações homofóbicas esteja estreitamente ligado às conquistas recentes dos homossexuais no terreno dos direitos humanos. Não lembro (e posso estar totalmente enganado a esse respeito) de casos tão corriqueiros de ataques a gays nas grandes cidades. Era algo comum em rincões conservadores, com população pequena, mas não numa Avenida Paulista. Do mesmo modo, nunca soube de nada semelhante ao projeto de lei do deputado goiano que propõe a legalização da "cura gay". Claro que não vai passar no Congresso, mas não deixa de ser um retrocesso e tanto.

É algo que me assusta. Em 42 anos de vida, construí convicções que foram se sedimentando ou se diluindo enquanto crescia e me lançava à vida real, para além do mundo ideal da família. Um processo complicado, no qual você precisa abandonar tolices há muito arraigadas na consciência e consolidar seu olhar particular sobre o mundo. O preconceito contra os homossexuais foi uma dessas tolices, deixada de lado à medida que conhecia obras de grandes autores e conhecia grandes pessoas que tinham como denominador comum sentir atração e amor por iguais. Hoje, o preconceito não apenas de sexo, mas também de cor e de classe me entristece, me exaure, me exaspera. Como andar contra uma multidão de torcedores do time adversário vindo em sentido contrário.