sexta-feira, 27 de dezembro de 2013


“Todo esse terremoto nos deixou mancos, incompletos, parcialmente vazios, insones. Nunca mais seremos o que éramos antes. Melhores ou piores, cada um saberá. Por dentro, e às vezes por fora, uma tormenta passou sobre nós, um vendaval, e essa calma de agora tem árvores caídas, telhados desmoronados, terraços sem antenas, escombros, muitos escombros. Temos que nos reconstruir, é claro: plantar novas árvores, mas talvez não haja nos hortos as mesmas mudas, as mesmas sementes. Erguer novas casas, fantástico, mas será melhor que o arquiteto se limite a reproduzir fielmente o projeto anterior ou será infinitamente melhor que repense o problema e desenhe um novo projeto, que contemple as nossas necessidades atuais? Remover os escombros, dentro do possível, pois também haverá escombros que ninguém poderá remover do coração e da memória.”

Mario Benedetti, em Primavera num Espelho Partido.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

E assim se passaram cinco anos





Muitas coisas aconteceram desde o dia 4 de dezembro de 2008, quando publiquei o primeiro texto neste blog. Enquanto o Brasil e o mundo passaram por reviravoltas, guerras e tragédias, entremeadas por pequenos lapsos de esperança, o tempo me deixou com mais cabelos brancos e mais questionamentos sem respostas. Afinal, amadurecer é também se desfazer de certezas. Dos 38 aos 43 anos, algumas convicções se evaporaram, outras se sedimentaram e a vida prosseguiu. O que penso dela está aqui, nesses quase 300 textos. Me arrependo de alguns, discordo de outros, mas tenho carinho pela maioria, incluindo aí citações de alguns autores lidos nesse período.

O blog foi também, e talvez isso tenha sido o mais importante, um espaço no qual pude dividir impressões com as pessoas mais variadas, algumas das quais não conheço pessoalmente, que se tornaram amigas, ainda que virtuais. Gente que comenta, compartilha, elogia, discorda, aponta caminhos alternativos ou apenas lê em silêncio. Gente que de uma forma ou de outra se tornou bastante presente no meu cotidiano.

Este Lado do Paraíso não é muito lido. São pouco mais de 28 mil visualizações e 944 comentários desde o seu nascimento, e nos últimos tempos a frequência de textos publicados diminuiu bastante. Senti que me repetia, que minhas obsessões estavam se tornando um leitmotiv lento e enfadonho a aborrecer meus poucos e fiéis leitores. Mas o que fazer? É através dessa forma repetitiva que consigo expressar minhas inquietações para mim mesmo, deixando ainda um legado intelectual para que um dia minha filha os leia (já lê alguns, de vez em quando) e me conheça ainda melhor.

Vou continuar, é claro. É o meu espaço, minha pequena trincheira, meu armarinho de miudezas existenciais. Quem sabe mais cinco anos. Ou dez, ou vinte ou apenas um. Abrirei um vinho daqui a pouco para comemorar esse aniversário silencioso. E faço, desde já, um brinde especial a vocês que me aturam. Obrigado pela companhia e cumplicidade.

domingo, 1 de dezembro de 2013

"Talvez a consequência mais desalentadora da minha doença atual - mais deprimente que suas manifestações práticas diárias - é a consciência de que nunca mais andarei de trem. Esta certeza pesa sobre mim como um cobertor de chumbo, que me pressiona cada vez mais para dentro da noção sombria de um final que marca a verdadeira doença terminal: a compreensão de que certas coisas nunca mais acontecerão. Esta ausência é maior do que a mera perda do prazer, a privação da liberdade, a exclusão das novas experiências. Recordando Rilke, ela constitui a perda de mim mesmo, ou, pelo menos, a perda da melhor parte de mim capaz de rapidamente encontrar contentamento e paz. Waterloo nunca mais, paradas no interior nunca mais, solidão nunca mais: não mais tornar-se, só o interminável ser."

Tony Judt, em O Chalé da Memória

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Xeque-mate


Em O Sétimo Selo, Ingmar Bergman constrói uma parábola meio insólita sobre o sentido da vida em contraponto à certeza da extinção. Ao desafiar a morte para uma partida de xadrez, o cavaleiro nórdico recém-chegado da guerra busca encontrar esse sentido obscuro e ao mesmo tempo adiar o fim iminente. Não é dos meus filmes preferidos, mas essa parábola atulhada de um determinismo profundamente niilista não deixa de ser interessante. Nossa existência é de certo modo uma partida de xadrez que tem a morte como oponente. Sua duração depende da nossa capacidade de improvisação diante do acaso – que pode se traduzir em doenças, acidentes ou assassinatos. Mas, por mais que tentemos a todo custo derrotar o oponente e fugir das ciladas ocultas em cada casa do tabuleiro, o jogo se encerra invariavelmente com o mesmo resultado.


Nessa partida, o mais difícil é sobreviver às ausências infligidas pelo correr das décadas. Aprendemos a suportar os peões que tombam aos montes, o cavalo abatido em pleno salto ou a torre derrubada ali na esquina. Mas outras lacunas nos ferem com gravidade e nos enfraquecem irremediavelmente. Perdemos nossos ícones primordiais e vamos à lona em câmera lenta, enquanto o adversário sorri do outro lado – afinal, ele tem todo o tempo do mundo à sua espera. Eu mesmo perdi um desses ícones de infância há bem pouco tempo, como já havia perdido outros em anos mais remotos. Percebemos, então, que o tabuleiro está ficando vazio, como uma terra devastada pela cinza das horas.

Mas não nos despedimos apenas de pessoas. Com elas, vão-se embora também as referências de um tempo em que a vida parecia mais simples e idílica, por mais difícil que fosse em realidade. Perdemos a inocência, e com ela as certezas e convicções inabaláveis. É  mais ou menos o que disse o espanhol Enrique Vila-Matas no livro Chet Baker Pensa na sua Arte: “Acaso a vida não era melhor quando não tínhamos a menor sombra de dúvida sobre quem éramos? Mas já é difícil que se possa voltar a ser um coração simples, sobretudo quando se conseguiu chegar a saber que o mundo inteiro é denso e estranho, tão estranho que, precisamente, o inalcançável se situa no nosso interior.”

Uma vez, entrevistei o poeta argentino Juan Gelman e ele me disse que uma infância feliz é a pátria mais invulnerável. Um território ao qual podemos voltar sempre que a realidade nos devora. Um reino de Nárnia para além do fundo do armário, onde voltamos a ser onipotentes. Sim, essa pátria permanece, apesar das quedas em sequência que o adversário nos obriga a vivenciar. Mas creio que uma parte dela, seja um muro ou um campanário, acaba se esfacelando com o passar do tempo e se convertendo em um misto de resignação e desespero. É quando descobrimos que o mundo é denso e estranho, como disse Vila-Matas, e somos incapazes de domá-lo.  

terça-feira, 29 de outubro de 2013

O que ficou pelo caminho




Há alguns meses, um amigo dos tempos de jornalismo em São Paulo me fez um excelente convite: escrever um livro. Em parceria com um colega, ele criou uma editora de e-books para publicar obras que, pelo que entendi, pensam o Brasil atual sob um ponto de vista regional e com abordagens das mais diversas. Já estão sendo produzidos trabalhos sobre temas que vão da cena cinematográfica do Recife aos black blocs em São Paulo. Ele queria que eu escrevesse um ensaio sobre a relação paradoxal entre as letras do cancioneiro axé (que exaltam a alegria sem fim de viver em solo baiano) e os índices avassaladores de violência no estado (que hoje possui uma das maiores taxas de homicídios do país).

Agradeci muito a oportunidade, mas declinei do convite. Mal consigo atualizar este blog, que vive à míngua com dois ou três textos a cada mês. Não conseguiria dar conta, dentro de minha rotina atual, de um projeto tão interessante, vasto e exaustivo, além do fato de ser um tema que não domino. Não acompanho – nem me interesso – pela produção artística baiana de massa. De qualquer modo, expliquei a ele que o conceito de felicidade eterna, onipresente nas canções dos artistas de Carnaval dos anos 90, vem dando lugar a algo mais grosseiro e desesperançado. Hoje, sobretudo no meio do pagode, muito enraizado nas classes populares, há um culto à sexualidade exacerbada, com letras preconceituosas e profundamente violentas. É como se a coisa toda tivesse desandado e a música refletisse isso, esse estado de coisas brutalizado.

Mas a verdade é que a proposta me deixou com uma ponta aguda de saudade, e é sobre isso que eu queria falar. Da saudade de duas paixões que aos poucos fui abandonando pelo caminho: a literatura e o jornalismo. O delírio de juventude no qual projetei a mim mesmo como um Scott Fitzgerald da virada do milênio se esvaiu na realidade dos anos e, de certa forma, esbarrou na falta de talento e de profissionalismo para a lida diária com as palavras. Escrever demandaria um sacrifício pessoal que eu não estava, nem estou, disposto a enfrentar. Talvez por isso, o romance que comecei há 11 anos, aproveitando um curto período de solidão e paz financeira num hotel em Fortaleza, permaneça inacabado. Gostaria de retomar as cento e poucas páginas de Puppy, que possui alguns momentos de boa literatura, mas nem sei como o homem de 43 anos dialogaria com o de 32 que deu forma àquelas páginas. De vez em quando releio alguns capítulos, me animo, mudo alguns trechos. Mas em seguida ele volta às profundezas do oblívio digital.

Já o jornalismo foi sendo aos poucos massacrado pelo cotidiano estressante da redação, do mais do mesmo, da labuta diária com seus plantões insuportáveis, pautas desinteressantes e, principalmente, salários aviltantes. Mas sinto uma imensa saudade do ambiente em que me movia como um leão na savana. Era o meu habitat. Como repórter de cultura e crítico de cinema, tive a oportunidade de entrevistar algumas das personalidades mais interessantes da produção artística brasileira e, com bem menos frequência, estrangeira. Gente como Silvio Tendler, Hector Babenco, José Eduardo Agualusa, Juan Gelman, Constantin Costa-Gavras, Fernando Meirelles, Walter Salles, Marcelo Piñeyro, Paulinho da Viola e muito mais. E também pude escrever sobre escritores, cineastas e compositores fundamentais na minha trajetória.

Como os próprios jornais impressos, todos esses nomes parecem pertencer a um mundo em extinção, do qual sou um dos sobreviventes. O jornalismo como o conhecemos caminha para se tornar um fóssil. Se antes formava opiniões, hoje é guiado por elas. Virou uma gigantesca imprensa marrom, com raras e muito honrosas exceções. Como um náufrago que pulou fora antes do navio ir a pique, observo tudo de longe, incapaz de vislumbrar a chegada do resgate. Ficam as reminiscências, a busca quase sagrada da palavra perfeita, o prazer de escrever pequenas obras-primas de três ou quatro laudas encurraladas pelo dead-line. Obras-primas que, na semana seguinte, se reduziam a uma lembrança esmaecida na mente de meia dúzia de impávidos leitores. 

domingo, 27 de outubro de 2013

"Dorothy Hewitt conta que, há pouco tempo, no hospital, quando a incerteza era máxima e não sabia se morreria ou sobreviveria, não era medo o que sentia, mas sim um imenso vazio. Não dormia de noite e esperava com ansiedade a chegada da manhã. Como se a manhã fosse salvá-la. Passava as noites a olhar pela janela, à espera das primeiras luzes. Essa experiência de vazio de Hewitt é um tipo de emoção que surge quando o realismo se rasga e aparece no seu lugar o núcleo duro do essencial, a nebulosa do ser verdadeiro, a bruma da identidade profunda que é sempre estranha e estrangeira. Também a sensação de não ter dado o que tínhamos, nem ter sabido viver intensamente. Seguramente, Dorothy Hewitt esperava a chegada da manhã confiando que esta a ajudaria a cortar amarras com o vazio e lhe permitiria traçar passadiços, talvez mesmo procurar atalhos até ao núcleo incomunicável."

Enrique Vila-Matas, em Chet Baker Pensa na sua Arte.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Uma espécie de saudade




No rádio do táxi, o locutor falava sobre um ciclone poderoso que se aproximava da costa, provocando o deslocamento de milhares de pessoas. Meio alarmado, perguntei se aquilo era em Portugal e o taxista me tranquilizou: “Não, é lá nas Filipinas. O nosso ciclone é outro”, e sorriu com um travo quase imperceptível de amargor. Perguntei se ele se referia à crise econômica e disse que sim, complementando: “A Europa é um projeto fracassado”. Ele nos deixou no Chiado e saímos caminhando pelas ruas. O tal projeto fracassado era inapreensível para mim. Talvez um empobrecimento momentâneo após alguns anos de bonança, o que não deixa de ser grave. Mas estava definitivamente diante de uma civilização avançada, que evoluiu muito dos tempos do salazarismo para cá.

Volto aos taxistas. É possível arranhar a superfície da alma lisboeta ao conversar com eles, com sua sintaxe peculiar, em geral mais comunicativos que no restante da Europa (ou talvez seja a língua comum que facilite). Conheci sobreviventes de tragédias passadas, como a extrovertida senhora que guiava com surpreendente desenvoltura pelas ruelas fervilhantes do Bairro Alto no início de madrugada. Enquanto nos levava ao hotel, ela resumiu rapidamente a sua história: vivia em Angola quando eclodiu a guerra no país, então fugiu com os filhos para a África do Sul. Lá, precisou fugir novamente, quando o país se destroçou durante os conflitos que marcaram o fim do apartheid. Foi para o Rio de Janeiro, pois precisava proteger suas crianças. Mas era uma época (não muito diferente de hoje) em que até a polícia matava crianças, como ocorreu na chacina da Candelária. Voltou a Lisboa para acompanhar os últimos dias de vida do pai e lá ficou, enfim. Suas crianças, hoje adultas, moram nos Estados Unidos.

Outro sobrevivente que conhecemos nas ruas de Lisboa foi um ex-combatente da guerra de Angola. Ele nos disse que não viaja de avião nem de navio por ter escapado de desastres terríveis nesses dois meios de transporte. “No avião morreram 14 pessoas e eu sobrevivi, talvez porque sou católico. E no navio, durante a guerra, perdi pessoas queridas em um naufrágio”. Comento com ele que a guerra é uma experiência que jamais se esquece, e ele concorda, com certa amargura: “Sem dúvida, amigo, sem dúvida”. É um senhor simpático de 70 anos, que recentemente fez uma viagem a Salamanca a bordo do seu velho Mercedes com 17 anos de uso e mais de 1 milhão de quilômetros rodados.

A melancolia tipicamente portuguesa parece ter se dissipado em parte, ao menos na capital. Lisboa é uma cidade vibrante, embora um pouco ensimesmada, mas de qualquer modo belíssima. Nela, a sensação de pertencimento que senti em Paris voltou a se manifestar. Uma espécie de saudade. Como se algo em mim dissesse: sou daqui. Minha relação com o país, que transcende o idioma comum e é fruto de uma árvore genealógica da qual infelizmente pouco conheço os frutos mais antigos, se intensificou com os versos de Pessoa, o pensamento de Saramago e a voz de Teresa Salgueiro. Mas estar lá é outra coisa. Ao ver de perto tudo aquilo, uma emoção profunda me arrebatou. E pensei com alegria numa remota possibilidade de viver em Cascais. Sim, queria envelhecer ali, vendo a vida passar naquelas ruelas, tão perto do mar salgado feito de lágrimas de Portugal. 

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Admirável mundo velho



Outro dia me deparei com imagens fascinantes. Eram fotos de integrantes das tribos Surma e Mursi, que vivem ao Sul da Etiópia e mantêm costumes semelhantes aos da pré-história. Eles correm risco de extinção. Ou pior: de aculturação, fruto do contato cada vez mais frequente com a civilização como a conhecemos. Ao observar a maneira singela com que se adornam e se embelezam, utilizando materiais retirados da natureza, penso comigo: desgraçada é a civilização – a nossa, branca, ocidental, fruto das revoluções industrial e tecnológica – que permite o fim de uma cultura tão poderosa. Encaro aqueles rostos e eles me devolvem um mundo, encerram uma complexidade inacessível. E me pergunto: por que sociedades avançadas não são capazes de preservar sociedades ancestrais? Talvez porque não sejamos, na essência, avançados. Matamos incas, astecas, maias, aborígenes e ianomamis e o que ganhamos com isso?  

Não estou, aqui, fazendo a defesa de um paraíso idílico não corrompido. Afinal, algumas dessas sociedades guardam costumes terríveis. Apenas defendo inutilmente que a Terra deva comportar a permanência de culturas aparentemente primitivas sem a interferência das sociedades ditas evoluídas. Um pensamento que não é meu, mas que reproduzo de uma grande amiga dos tempos de São Paulo, antropóloga brilhante, quando lhe perguntei qual seria o caminho viável para as tribos africanas. Na época, eu defendia a integração entre os povos. Hoje, não tenho dúvida de que ela está certa. De que a interferência das potências ocidentais, primeiro na era das colonizações, depois no período pós-ONU, é responsável pelo colapso de um mundo que vivia em certa harmonia. Ou alguém acredita que a vida das tribos Surma e Mursi, em seu coletivismo primário, é pior do que a das populações urbanas miseráveis de países como Serra Leoa, Libéria ou Sudão?

De tudo isso, o que mais me entristece é perceber como o mundo é vasto, rico e diferente. E que não conhecerei (não conheceremos) nem uma décima parte dele. Essas imagens que me fascinaram, assim como alguns registros que Sebastião Salgado fez dos confins do globo, escancaram o nosso desconhecimento, a nossa ignorância. Temo pela extinção, nas próximas décadas, de milhares de idiomas, etnias, costumes e culturas. É um genocídio silencioso, sem protestos nas ruas ou desaprovação das comunidades internacionais. Apenas o grito mudo e inútil de um admirável mundo velho que se despede. 

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Acasalamento




Quando nos embrenhamos em um novo livro, estamos de certa maneira nos envolvendo em um ato de sedução – que pode se consumar ou ficar pelo caminho. É como um ritual de acasalamento. Pode ser quase instantâneo, como o sexo entre coelhos, ou um processo lento e particularmente tortuoso, como os que praticam algumas espécies de répteis e insetos. Essa analogia sem pé nem cabeça me veio à mente na noite de ontem, quando enfim a autobiografia de Ingmar Bergman, Lanterna Mágica, conseguiu me seduzir. Até isso acontecer, precisei enfrentar umas quarenta e tantas páginas sem conseguir me concentrar ou me envolver, abstraindo ou inventando desculpas para pôr o livro de volta à mesa de cabeceira.

Esse talvez seja o grande prazer da literatura: nos envolver paulatinamente até o momento em que nos deparamos com o delírio silencioso. Ao atingirmos esse estágio, não há mais páginas à nossa frente, mas sim um muro no qual são projetadas nossas angústias, convicções e idiossincrasias. Ali elas ricocheteiam, ficando mais fortes ou virando pó. No meu caso, algumas seduções foram imediatas. Lembro que aos 15 anos me deixei levar feito uma moça sonhadora do interior após ler a frase: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía se lembraria do dia em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Quem já leu, vai identificar de imediato o início de Cem Anos de Solidão. Há bem menos tempo, ocorreu algo parecido: sentei na cadeira do meu gabinete, abri um livro espesso de capa verde, pego displicentemente na estante, e quase não consegui parar para dormir e trabalhar no outro dia. O livro era Conversa na Catedral.

Outras obras demandam tempo e profunda dedicação. Mas, quando então o acasalamento se consuma, dão em troca uma paixão avassaladora. Grande Sertão: Veredas é assim. Nele, não lemos um livro, desbravamos um universo. Há ainda aquelas que, como mulheres complicadas ou vinhos raros, exigem um mínimo de maturidade para ser apreciadas. Precisei me aproximar dos 30 anos para enfim compreender O Sol Também se Levanta e Suave é a Noite. Já outras, mesmo quando ostentam nomes célebres na capa, como um atestado antecipado de prazer, acabam ficando pelo caminho. Recordo agora de três: Auto-da-Fé, O Legado de Humboldt e Retrato do Artista Quando Jovem. Foram como um tipo de amor que não pode dar certo na luz da manhã: modorrentos, longos, incapazes de envolvimento fugaz ou duradouro. Permanecem na estante violados pela metade.

Quem lê o que escrevo neste blog já conhece as minhas obsessões, os ídolos que cultivo como flores de inverno, os romances que alicerçaram a minha formação. Eles fazem parte de quem eu sou, do afeto que devoto a esses volumes de papel, muitos deles amarelados e envoltos em poeira e nostalgia. A cada mês chegam novos títulos, e tento dar conta de conhecê-los e me reabastecer de fascínio. De vez em quando, algo que li em uma revista ou jornal detona o desejo de ler algo que permanece na estante há muito tempo e nunca ganhou oportunidade. Ou mesmo de reler o que um dia me marcou. Sei também que outros continuarão sem chance, atolados pelo excesso de páginas e pela escassez das horas. Prossigo assim, em busca do tempo perdido, como os volumes de Proust que venho comprando aos poucos para um dia, quem sabe, me deixar levar por minha própria madeleine.   

terça-feira, 10 de setembro de 2013

No dia de hoje dez anos atrás


No dia de hoje dez anos atrás
sindicalistas gritavam nos megafones
ali em frente, no prédio dos Correios.
A realidade nos alcançava, nos invadia.
No dia de hoje dez anos atrás
havia em casa uma celebração invertida
uma algazarra de silêncios.
Eu gritava para dentro, chorava pelo avesso.
Me extinguia também, um pouco.
No dia de hoje dez anos atrás
o vácuo tornava-se rotina, como
um tronco oco, um hiato perene.
Uma queda contínua, sem chão,
esboço do meu próprio fim.


terça-feira, 27 de agosto de 2013

Pássaros pintados




Faz muito tempo que li O Pássaro Pintado. Mas até hoje não esqueço do sentimento de repulsa que algumas passagens do romance de Jerzy Kosinski provocaram em mim. Em alguns momentos, lembro, precisava até desviar os olhos da página diante de descrições tão vívidas de crueldade: infanticídios, corpos desmembrados, sobrevivência a qualquer custo. O livro narra as desventuras de um garoto cigano desgarrado dos pais, perambulando e se escondendo nas florestas geladas da Polônia durante a Segunda Guerra Mundial. A perseguição do exército alemão a qualquer tez distinta à brancura ariana era implacável, mas o livro tratava, em sua essência, de algo ainda mais amplo e devastador que a insânia nazista: a crueldade inata do ser humano. Uma característica tão natural em nós quanto o fato de sermos bípedes ou podermos nos expressar com palavras.

O título do livro, por exemplo, faz referência a um trecho particularmente brutal: um garoto capturava um passarinho e o pintava com cores berrantes, tornando-o irreconhecível aos demais da sua espécie. Em seguida, o soltava. O prazer do garoto era observar o animal ir de encontro aos seus semelhantes e ser atacado. Incapaz de se explicar ou sequer compreender por que não o reconheciam, o pássaro pintado era bicado até a morte. Essa parábola é perfeitamente aplicável ao que se observa hoje em muitas partes do mundo, com uma diferença (e aí se concentra toda a ironia cruel de Kosinski): aqui não nos referimos a animais irracionais – pelo menos não no sentido convencional do termo.

Fico me perguntando se, ao fazer uso de armas químicas de destruição em massa contra seu próprio povo, o ditador sírio Bashar al-Assad não reconheceu naquelas centenas de crianças mortas seres da sua espécie. Que tipo de daltonismo seletivo é capaz de provocar tamanha distorção do real, transformando um homem comum, de feições banais e quase obtusas, em um genocida? Penso comigo: não há remorso ou sofrimento íntimo quando se ordena e executa um ato tão bárbaro? São perguntas tão tolas e ingênuas que me sinto como o bom selvagem de Rousseau sendo aos poucos corrompido pela sociedade que me rodeia. O homem é um bicho mau, me lembra William Burroughs em O Gato por Dentro, complementando o que Kosinski deixa bem claro em O Pássaro Pintado, com seu niilismo sem meias-medidas. Enfim, não existem bons selvagens, embora eu não tenha convicção plena de que somos intrinsecamente maus  acho até que não somos. De todo modo, me parece inquestionável que a passagem da humanidade pela Terra é em grande parte assentada sobre o alicerce da barbárie. Assim cresceram os impérios, desde os assírios até os sírios.

Mas agora me sobressalto com outra dúvida: se os pássaros somos nós, pintados ou não, quem é o garoto neste nosso mundo real de dentistas calcinados e meninos com  olhos arrancados? Quem é o titereiro, o Sabbath, o Chaplin dançando com o globo? Quem será esse desgraçado dono dessa zorra toda, perguntaria Raul Seixas? O fato é que não há ninguém. Estamos sozinhos como uma criança cigana perdida no mundo, aprendendo a se virar com o que tem numa terra devastada e desconfiando de quem se aproxima. O horror, o horror. Pode parecer – e é – uma visão desoladora, que revela um profundo ceticismo. Mas que outros sentimentos poderiam nos percorrer quando nos deparamos com aqueles corpos em série de quem quase não viveu? Ao contrário do livro de Kosinski, aquelas cenas não são fruto de uma mente criadora, e é inútil desviar os olhos.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Testemunhas




Observo os objetos que compõem o meu gabinete. E me pergunto: o que será deles, caso sobrevivam ao meu fim. Ficarão guardados em uma caixa de sapatos? Depositados em um canto escondido no futuro escritório de minha filha, como lembrança do pai que a amou tanto? Serão doados, jogados fora, convertidos em poeira e desimportância? Não faço ideia. Sei apenas que toda essa memorabilia representa quase nada se despida do valor afetivo que o seu dono destina a cada peça. São singelos ícones de uma linha do tempo imprecisa, que no decorrer das décadas receberam sucessivas camadas de sentimento e saudade a cada olhar ou a cada reminiscência.

Meio empoeirados, atulhando as minhas prateleiras ou enfeitando a minha bancada, eles permanecem ali, como cúmplices de crimes inexistentes: o delicado anjo de porcelana que pertenceu ao meu avô paterno; o São Paulo dado por minha mãe para me proteger de tempos difíceis ou doenças graves; a calçadeira de osso que foi de meu pai e que sempre gostei de usar. Há mais: o machadinho de pedra-sabão adquirido em Ouro Preto, no qual se lê a inscrição “A felicidade está contida no vento frio das auto-estradas”, de autoria de um certo Paradise Duluoz; o simpático índio inca de madeira comprado no Chile; o rosto de expressão entre irônica e carrancuda que me remete a um dia particularmente agradável em Montmartre.

Quanto deve valer, por exemplo, a pedra bruta com cristais incrustados que adorna a prateleira dos autores de R a S? Para os outros, apenas um mineral sólido e sem serventia, mas para mim um presente precioso, dado por uma garota mineira por quem me apaixonei quando estive em Curvelo. Do mesmo modo, que significado especial pode ter o velho par de sapatinhos azuis de bebê, bem gasto, que fica ao lado da caixa de charutos? Nenhum, senão pelo fato de que me fazem lembrar dos primeiros anos de minha filha, e de como eu amava vê-la correndo com aqueles sapatinhos.

Como todos esses objetos, também os livros, discos, fotografias, pôsteres, poemas dispersos, originais nunca publicados e velhas correspondências devem sobreviver a mim, bem como as centenas de rolhas da minha coleção de bebum assumido. Reunidos neste pequeno quarto, eles de alguma forma refazem em silêncio o percurso sinuoso de minha passagem pelo mundo. Daqui a 100 anos, alguém vai abrir as páginas de algum desses livros? Vai descobrir naqueles originais guardados um talento inaudito? Vai se emocionar com as cartas que falam de anseios malogrados ou sentimentos represados? Para todas as perguntas, a resposta é: provavelmente não. Tenho consciência da minha insignificância. Sei que essas quinquilharias que hoje me rodeiam serão só testemunhas da cinza das décadas, do oblívio inapelável ao qual serei lançado um dia.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Meu amigo Raul




Hoje acordei com vontade de ouvir Meu Amigo Pedro, de Raul Seixas, provavelmente por ter assistido no sábado ao documentário O Início, o Fim e o Meio. E ao ouvir a canção, enquanto tomava o café da manhã antes de ir para o trabalho, me transportei quase de imediato para uma tarde quente e empoeirada de mais de 20 anos atrás, em algum trecho de uma estrada de Minas, numa das muitas viagens que fiz de ônibus nesse período. Umas quatro fileiras à minha frente, um rapaz ouvia músicas de Raul num velho gravador, que ecoavam por todo o ônibus, e era agradável passar o tempo ao lado delas. Uma das canções era justamente Meu Amigo Pedro, que lembro de ter ouvido pela primeira vez naquele momento. Estávamos em 1991 ou 1992, não sei precisar, e Raul Seixas tinha morrido poucos anos antes, embora se mantivesse vivo até demais naquele ônibus.

A idolatria em torno dele começava a tomar corpo, convertendo-o em um ícone profundamente identificado com as camadas populares. Suas músicas, mesmo as de significado mais obscuro, calavam fundo nos corações e mentes do Brasil profundo. Ao terminar de beber a vitamina e pegar a chave do carro, me veio à mente uma lembrança ainda mais remota (agosto de 1989, para ser mais preciso): eu e meu pai conversávamos na janela do quarto dele, na penumbra. Acabávamos de saber da morte de Raul, e eu me sentia triste. Meu pai, não sei se para me consolar ou apenas esboçando uma opinião pessoal, disse algo como: “A gente lamenta o fato dele morrer tão novo, mas não dá para dizer que era um grande artista, suas músicas não eram grande coisa”. Obviamente, meu pai, maturado por décadas no universo musical de Cartola, Silvio Caldas e Frank Sinatra, não perceberia em Raul uma voz capaz de lhe dizer algo de relevante.

O que fica evidente no filme de Walter Carvalho é que o roqueiro baiano não cantava para um público específico. Simples e sinceras, suas canções tinham alcance universal, daí uma canção como Ouro de Tolo fascinar tanto Caetano Veloso quanto o cara do ônibus que ia, sei lá, de Mariana para Barbacena. Isso fica bem claro na sequência do enterro de Raul, uma das mais comoventes do documentário. Aquela multidão de gente da periferia de Salvador cantando alto e chorando o fim do ídolo, do amigo barbudo e magricela que lhes falava ao pé do ouvido, abordando com simplicidade pungente (e ao mesmo tempo com profunda autenticidade e talento) temas como autoritarismo paterno (Sapato 36), amores não correspondidos (A Maçã), insanidade (Maluco Beleza), fé (Tente Outra Vez), elucubrações metafísicas (Gita) ou existências desperdiçadas pelas convenções sociais (Medo da Chuva).

Ponha uma música de Raul em qualquer baile de subúrbio ou numa festa da alta roda que a receptividade vai ser a mesma. Era o que eu percebia, um tanto emocionado, nas festinhas da faculdade em São Paulo ou, como já disse, nos ônibus interestaduais que cortam o Brasil. É uma das melhores maneiras de ser eterno.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Depois de junho




Ainda não vi Depois de Maio, que mostra como prosseguiu a vida dos manifestantes que cravaram seu lugar na história, em 1968, ao convulsionar a França – e por consequência várias cidades do mundo – com barricadas, slogans imortais e confrontos com a polícia. Talvez o filme de Olivier Assayas, com seu olhar retrospectivo, me ajudasse a compreender os movimentos populares que sacodem o Brasil de 2013. Nas últimas semanas, pouco me manifestei sobre o desenrolar dos fatos. Não saí às ruas nem levantei cartazes, muito menos corri das tropas de choque. Li muitas análises e depoimentos interessantes, outros nem tanto. Acompanhei indignado o recrudescimento da violência policial e, ao fim de tudo, me vi cheio de perguntas sem respostas sobre o real significado disso tudo. Sei apenas que gostei do que vi e creio que algo permanecerá, embora não saiba exatamente o quê.

É fato que, para se alcançar uma insurreição plena, seria necessário paralisar atividades essenciais ao funcionamento do país. Convocar uma greve geral que interrompesse, por exemplo, o sistema de transportes, os bancos e a polícia. Seria o caos, mas de certa forma vivemos o caos cotidianamente, sobretudo os mais pobres, que moram longe, levam três ou quatro horas para chegar ao trabalho (quando há trabalho) e convivem com patrulhas e grupos de extermínio invadindo constantemente a sua rua. O Brasil é um país que não respeita os seus cidadãos, e isso não é novidade. Agora, os cidadãos deixaram de respeitar o Brasil. Cansaram. E não tem Copa do Mundo que sacie a delícia de andar nas ruas.

Uma hora, as manifestações vão arrefecer (já estão arrefecendo). Há boatos golpistas de lado a lado, todos sem fundamento. O Governo acena com mudanças mais ou menos significativas e outras descabidas, o Congresso ensaia algumas decisões midiáticas. Nas redes sociais, batalhas verbais se sucedem colocando em lados opostos petistas e anti-petistas, reverberando um extremismo anacrônico e estéril. E nessa hora começa a bater um cansaço. Uma exaustão por saber que esses discursos não dão conta da complexidade do país, do grau de miséria, vergonha e desrespeito a que somos, em maior ou menor medida, expostos. A impressão é que nem mesmo quem vai às ruas sabe o que quer, apenas vislumbra a possibilidade de um país menos hostil.

Num cenário assim, qualquer centelha provoca explosão, seja o aumento de vinte centavos na passagem de ônibus ou a tal PEC 37, sobre a qual não tenho opinião formada. Aliás, não tenho opinião formada sobre quase nada. Transito o tempo todo por um terreno pantanoso de convicções frágeis, que se movimentam como placas tectônicas a cada informação que me acrescenta conhecimento e visão de mundo. Mas voltando às manifestações, o fato é que, após os milhões nas ruas pedindo eleições diretas em 1984, vivemos décadas de resignação interrompidas aqui e ali (como é o caso dos caras pintadas pedindo o impeachment de Fernando Collor em 1992). Nesse hiato, a sociedade assistiu ao esgarçamento de princípios morais elementares. Forçou-se a corda ao máximo, desde a compra de votos para a aprovação da emenda da reeleição, durante o governo FHC, até o escândalo do Mensalão, na gestão de Lula, culminando com os gastos obscenos para a Copa do Mundo de 2014.

A gota d’água, a meu ver, foi a escolha de Marcos Feliciano para presidir a Comissão dos Direitos Humanos da Câmara. Ali, o cinismo atingiu seu apogeu. Foi como se dissessem: “Vamos com ele mesmo e foda-se a opinião pública”. Impossível aceitar, impossível retroceder. As manifestações que sacodem o Brasil não padecem de escassez de causas, e sim do excesso delas. Resta saber o que permanecerá depois de junho, quando os milhares de pessoas nas ruas enfrentando balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo forem apenas uma foto na parede da nossa lembrança. Enfim, olho aquelas pessoas com esperança e admiração, mas também com uma ponta de desilusão e ceticismo. E, acima de tudo, com a certeza de que o primeiro passo foi dado.

quinta-feira, 6 de junho de 2013


"Quanto a mim, eu era o começo, o meio e o fim juntados num menino muito novo e já velho, já morto (...) Reunido, apertado, tocando com uma mão meu túmulo e com a outra meu berço, sentia-me breve e esplêndido, um raio terrível eclipsado pelas trevas."

Jean-Paul Sartre, em As Palavras

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Por quem os sinos dobram





Ontem, escrevi no Facebook um pequeno comentário sobre a sensação de impotência e perplexidade que a sucessão de atos violentos no país vem causando em mim. O desabafo terminava com um questionamento exasperado: “Há alguma dúvida de que o Brasil está se tornando uma imensa fábrica de imbecis? Uma indústria de gente amoral, imersa em brutalidade, incapaz de viver em sociedade?”. Entre os que comentaram o texto, um amigo brincou, parafraseando Humphrey Bogart em Casablanca: “Sempre haverá Paris...”. Eu, do alto da minha ingenuidade inócua, retruquei: “Mas não quero apenas ir para Paris e deixar isso aqui entregue à barbárie. Quero ver uma evolução.”


Então o meu amigo, muito mais vivido e com uma visão de mundo mais impiedosa e realista que a minha, respondeu: “Reverter essa situação é um trabalho de 50 anos, se começar hoje às 7 da noite. Você não é responsável pela barbárie e sim um cidadão do mundo com direitos adquiridos sobre cultura e civilidade, e não é imortal. Nessa hora vale Buñuel: ‘Pátria é um conjunto de rios que correm para o mar’”. Ainda brinquei, dizendo que só me restaria então chorar aos pés da Torre Eiffel e depois tomar um vinho no Quartier Latin, que ninguém é de ferro. Ele, obviamente, sugeriu que dividíssemos a garrafa.

O que meu amigo disse, no entanto, me fez refletir sobre o meu papel – e o de todos os cidadãos brasileiros que se vêem acuados pela barbárie e não contribuíram (ou ao menos não contribuíram diretamente) para esse cenário de indigência moral, disseminado por todos os estados do país e por todas as classes sociais. E admito que ele tem razão. Será que não merecemos viver dentro dos princípios que defendemos e nos quais acreditamos? Sendo um humanista, defensor do bem-estar social, da igualdade de direitos e do absoluto respeito ao outro, por que não mereço viver em um lugar onde esses elementos compõem a regra da vida em sociedade, ao invés da exceção? A resposta me parece clara.

Mas, deslocando o ponto de vista em outra direção, será que não tenho mesmo participação ativa na consolidação da ruína em que vivemos? O que fiz até hoje para mudá-la? É meu dever mudá-la? A resposta já não me parece tão clara. O fato é que sou apenas um teórico de meia-tigela, sem nenhum pendor para a prática, incapaz de botar a mão na massa e desempenhar um papel ativo na construção de uma sociedade menos brutalizada. Os textos que escrevo aqui no blog (muito menos os comentários irritadinhos que faço no Facebook) não são capazes de me redimir da minha própria inércia. O que fazer então? O salão de embarque internacional do aeroporto não deixa de ser uma saída tentadora, mas nem saberia como me manter lá fora, sobretudo agora que a Europa vive uma crise sem solução a curto prazo.

Sei apenas que meus sentimentos seguem à risca o que John Donne escreveu há muito tempo, inspirando Hemingway a criar Por Quem os Sinos Dobram: “Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano”. Talvez por isso, mesmo se estivesse longe, bebendo tranquilamente um Bordeaux num daqueles charmosos bistrôs do Quartir Latin, feliz como um perdigueiro no mato, eu provavelmente continuaria me lamentando. Um lamento tolo, embebido em hipocrisia, inutilidade e assombro. 

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Filho temporão


Ao ver Mario Vargas Llosa falar com entusiasmo, no Programa Roda Viva, dos anos que viveu em Paris e Londres, eu percebi o quanto cheguei tarde ao mundo. É um sentimento que carrego há muito tempo, e que deixa entrever uma incômoda tendência à nostalgia, ao não-vivido, ao que convulsionou o mundo antes que eu pesasse sobre ele. A Paris e a Londres do escritor peruano não são as que conheci no início deste ano. Segundo ele, não existem mais a efervescência cultural e política que culminou nos protestos de Maio 68, a hegemonia dos grandes pensadores, a sensação de estar na capital do mundo. Vargas Llosa lembra, com um gostoso sorriso de desilusão, que as pessoas acreditavam em Sartre, liam Sartre e reverenciavam Sartre como se fosse um demiurgo visionário.


Hoje, a maioria das pessoas nem mesmo se pergunta: quem foi Sartre? E, ao me debruçar como faço agora sobre As Palavras, seu belo e sarcástico livro de memórias, acabo me sentindo como um soldado que se atrasou para a batalha e, quando chegou, encontrou apenas terra arrasada e corpos empilhados. Essa involuntária sensação de que sou um filho temporão de outra era faz um certo sentido. Afinal, onde foi parar o ideal socialista que Sartre tanto glorificou, mesmo sabendo das atrocidades cometidas por Stálin e sua turma vermelha? Onde foram parar a relevância das idéias, o poder de fogo dos grandes romances, as discussões inflamadas regadas a vinho ou cerveja? Sartre é extemporâneo, como eu sou (as comparações param por aí). A argamassa que deu forma ao século em que nascemos foi implodida para dar lugar a uma nova ordem mundial da barbárie. Substituímos as tempestades de fogo da Segunda Guerra pelos aviões lançados contra prédios. A batalha encarniçada e suja nas trincheiras pelo asséptico jogo de videogame que só causa dor aos que recebem as bombas.

Vargas Llosa diz que hoje a efervescência dos velhos tempos talvez possa ser encontrada em Berlim, para onde confluem milhares de jovens em busca de cosmopolitismo. Mais uma vez, percebo que cheguei tarde. Não sou mais jovem, ou pelo menos não sou mais suficientemente jovem para me hospedar em hostels e me integrar com gente do mundo todo, participar de passeatas por causas nobres, namorar uma menina do Nepal ou, sei lá, fumar haxixe com um pessoal da Nova Zelândia. Não sou mais mochileiro, nem leio mais Kerouac. Sou um recluso, um ermitão enclausurado na minha modesta torre de papel. Não é ruim, ressalto. Gosto dos vinhos na varanda, da leitura descompromissada, da companhia de minha família. Mas sinto falta de um pouco de passado. Das tertúlias em francês de que não participei, dos pensadores que não segui, das causas em que não me engajei. Enfim, sinto falta de crer em utopias, em vez de me lambuzar de silêncio e incompreensão.

terça-feira, 30 de abril de 2013

O mundo é um monstro



Eu hoje acordei meio deprimido sem saber exatamente o motivo, como acontece de vez em quando. Algo se processa em minha mente enquanto durmo e de manhã percebo o estrago. Então lembrei que, pouco antes de dormir, tinha lido a notícia de que a garotinha de cinco anos estuprada e torturada na Índia havia morrido no hospital. Aquilo doeu de uma forma estranha, como se houvesse uma implosão em algum ponto do meu corpo. Devo ter dormido com esse fato provocando pequenas incisões nos meus sentimentos, e acordei com uma desesperança, um desalento e uma constatação óbvia: o mundo é um monstro.

Na semana passada, sonhei que vi da varanda do meu apartamento uma briga de trânsito que culminou numa execução. Foi um pesadelo muito real: dois carros (curiosamente de modelos antigos) fechando-se mutuamente, os xingamentos e por fim um dos carros invadindo a calçada, um dos sujeitos saindo do carro e descarregando o revólver no outro. Lembro com nitidez do corpo já inerte, encostado num muro, enquanto as balas ainda iam em sua direção. Lembro de ter pensado em ligar para a polícia, mas permaneci paralisado pelo pavor. Então acordei, o corpo tremendo, suando, como se acabasse de presenciar um assassinato de verdade.

Para mim ficou claro: minha mente processava naquele momento o estado de torpor, medo e impotência em que vivemos. Um estado latente, que se exacerbou em sonho, mas que nos deixa em permanente alerta quando estamos acordados. Temos motivos para isso, como os animais da savana que ficam o tempo todo de olhos, nariz e ouvidos atentos a qualquer balançar de arbusto ou arrastar de patas no solo. Somos como zebras, tentando proteger a nós mesmos e a nossas crias do ataque iminente, da banalidade do mal. Curioso como é oportuna nos dias atuais essa expressão criada por Hannah Arendt para explicar o que sentiu durante o julgamento do nazista Adolf Eichmann. De acordo com Hannah, os atos de Eichmann não eram desculpáveis, muito menos ele era inocente. Mas não foram atos executados por um ser dotado de imensa capacidade de crueldade, e sim por um funcionário burocrata dentro de um sistema baseado em atos de extermínio. Um sujeito banal, em suma.

O que percebo hoje é que o mal – sistemático, gélido e praticado em escala industrial – serve não a um regime, mas a toda uma civilização. Padecemos de uma enfermidade moral, que ora se expressa no estupro absurdo de uma criança, ora num assalto que termina com a vítima incendiada sem qualquer possibilidade de defesa. Ou também em uma bomba dentro de uma panela de pressão, detonada por rapazes com feições angelicais e, num estágio acima, em um avião não-tripulado que despeja bombas e transforma famílias em escombros. É como se todos os princípios morais e humanistas sedimentados durante séculos tivessem evaporado. O tudo é permitido de que falava Dostoievski finalmente chegou. Vivemos em um mundo pré-iluminista, pré-renascentista. Um mundo à beira da pré-história.

Pergunto a mim mesmo como o ato tão extremo e tão profundo de matar pode ser cometido com tamanha regularidade e das formas mais prosaicas. Que mecanismo se processa em nós e nos transforma em assassinos? Não busco aqui explicações sociológicas, já que a profunda desigualdade social de países como Índia e Brasil é diretamente responsável pela violência urbana, mas não necessariamente por atos gratuitos de crueldade. Gostaria de compreender como é gestado um assassino potencial, até para não me sentir tão vulnerável diante de um, dos tantos que habitam o país onde vivo. Mas a chave está mesmo com Hannah Arendt: o mal é banal, e não comporta compaixão, piedade ou remorso.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

O afeto que se encerrou




Paulo Francis morreu no dia em que completei 27 anos. Eu trabalhava no departamento de pesquisa da Folha de S.Paulo e passei o dia escrevendo e levantando material para a edição especial sobre ele que sairia no dia seguinte, ao tempo em que suprimia a tristeza por sua perda e por meu aniversário passar praticamente em branco. Tinha aprendido a gostar de Francis, estimulado por um colega de faculdade cujas idéias e a bagagem cultural eu respeitava e admirava. Até hoje considero seus livros de memórias – Trinta Anos Esta Noite e O Afeto que se Encerra – duas obras-primas. Sua erudição, mesclada com coloquialismo e boa dose de coragem, produzia textos sedutores, envolventes, mesmo que por vezes suas opiniões se mostrassem extremamente preconceituosas.


Grande parte dessa reverência se esvaiu com o passar dos anos. E isso ficou muito claro para mim outro dia, quando vi no Twitter um link para uma página que reunia 30 aforismos de Francis. Eu planejava compartilhar essas citações nas minhas redes sociais, até que fui lendo as frases. Havia reflexões interessantíssimas, como Todo otimista é um mal-informado”, e insultos hilários, como “Dizem que escrever é um processo torturante para Sarney. Sem dúvida, mas quem grita de dor é a língua portuguesa”. Outras, no entanto, eram de uma imbecilidade exemplar, como “A descoberta do clarinete por Mozart foi uma contribuição maior do que toda a África nos deu até hoje” ou “A função da universidade é criar elites e não dar diplomas a pés-rapados”.

Sei que posso ser acusado, aqui, de querer pregar o politicamente correto, quando na verdade estou tentando pregar apenas o que considero correto. As duas frases que citei por último deixam entrever a característica mais deplorável de Francis: o seu racismo. Sim, a função da universidade é criar elites, mas desde quando pés-rapados não podem ou não devem fazer parte dessa elite? A que elite ele se refere? Uma elite intelectual ou uma elite financeira? Quanto à África, deixando de lado toda a trajetória miserável que não permitiu ao continente produzir Mozarts em série, será que é tão difícil enxergar as contribuições musicais relevantes que ela nos legou? Eu mesmo poderia citar aqui, de cabeça, uns 10 artistas africanos excepcionais. A obtusidade de Francis neste caso é ainda mais clara.

Essa desconstrução de alguém que já admirei muito se intensificou hoje, quando assisti ao documentário Caro Francis, dirigido por Nelson Hoineff. Um filme interessante, embora claramente afetivo. Ali estava o Francis amigo, capaz de gestos profundamente generosos, e também o Francis hilário, com sua voz empostada de bêbado e seus olhos de louco. Os momentos derradeiros (do filme e da vida dele) são comoventes. Mas mesmo nesses trechos fica claro como as atitudes do jornalista eram nocivas, inclusive para ele mesmo.

Pouco antes de morrer, Francis acusou, no programa Manhattan Connection, os diretores da estatal Petrobras de enriquecerem de forma ilícita, depositando milhões em paraísos fiscais. Mesmo alertado pelos colegas de bancada da gravidade do que disse, preferiu sustentar a informação, que obviamente não poderia ser provada. A Petrobras entrou com um processo na justiça norte-americana que o levaria à falência, o que o deixou em desespero e provavelmente contribuiu para o infarto fulminante que o matou. Mas em nenhum momento os entrevistados dizem que Francis foi leviano ou que sua atitude era incompatível com o exercício do jornalismo. Limitam-se a culpar o médico e a Petrobras por sua morte. É claro que houve um erro grosseiro do médico (que tratou um infarto como uma bursite), mas por que Francis não buscou outro médico mesmo quando as dores aumentaram sensivelmente?

Quando o filme relembra a briga entre Francis e Caio Túlio Costa (então ombudsman da Folha), que culminou com a saída do colunista do jornal, Diogo Mainardi prefere ofender Caio Túlio, chamando-o de medíocre, a analisar o caso de maneira imparcial. Muitos outros entrevistados agem de forma parecida, tratando Paulo Francis como um arauto da inteligência e do refinamento numa cruzada contra a estupidez generalizada do brasileiro. O problema é que mesmo com um recorte tão favorável ao biografado, o que fica – ao menos para mim – é o retrato de um sujeito muitas vezes egocêntrico, arrogante e irresponsável.

Caetano Veloso cita em Verdade Tropical, que estou relendo, outro episódio envolvendo Francis: “No final dos anos 80, o jornalista carioca Paulo Francis escreveu de Nova Iorque para um jornal de São Paulo que, ao ver Bethânia cantando o ‘Carcará’ em substituição a Nara Leão em 64, percebera que o Rio mudara e ele passara desde então a considerar aquele momento como o marco da vinda ‘dessa gente’ (que ele despreza) para o Rio”. Esse episódio relembrado por Caetano (outro que já brigou feio com o jornalista) desvela o pensamento de Francis em todo o seu tenebroso esplendor: o elitismo sem sentido, o permanente saco cheio do mundo, a revolta contra as “impurezas” que tomavam conta do Brasil. São elementos que sem dúvida enriquecem o personagem, mas evidenciam a pobreza de espírito do criador. Como Pound ou como Céline, sendo que Francis nem de longe chegou perto da estatura desses dois.