terça-feira, 3 de novembro de 2015

A bruma do passado



Em Um Romance Russo, o escritor francês Emmanuel Carrére empreende uma busca obstinada pela memória perdida do avô. Uma procura que mexe não apenas com seus sentimentos, mas também com os de sua mãe, que prefere o silêncio mas deixa escapar um sofrido pesar ao falar do pai, desaparecido aos 45 anos depois de atuar como colaboracionista dos nazistas durante a invasão alemã na França na Segunda Guerra Mundial. Um traidor, portanto, mas muito mais complexo do que isso. Esse é só um dos pilares dramáticos que sustentam a narrativa autobiográfica de Carrére, mas foi provavelmente o que mais me comoveu. Ele vai atrás de correspondências e depoimentos que ajudam a elucidar em parte quem foi o avô, de origem russa e mente confusa, que se auto-depreciava nas cartas e viveu e criou os filhos de maneira instável, sempre com problemas financeiros e uma depressão crônica.

Essa busca de Carrére (que já havia me impressionado muito com o romance Outras Vidas que Não a Minha) me fez em muitos momentos planar além da leitura e pensar em meus próprios avôs e avós, e também nos meus bisavôs e bisavós. Pessoas das quais conheço pouco mais do que o nome. A vida de meu avô paterno, Jaime, por exemplo, é um mistério, embora o tenha conhecido relativamente bem até sua morte, aos 94 anos, quando eu tinha uns 20. Era um velhinho tímido, de sotaque lusitano, corpo frágil, olhos acinzentados e um bigode amarelado pelos charutos ordinários que fumava. Trabalhou durante 50 anos como bibliotecário no Gabinete Português de Leitura, o que dá um indício de onde vem a minha predileção pelos livros e o prazer de guardá-los e organizá-los. Sua casa, no bairro da Lapinha, continha uma extensa memorabília de pouco valor material, mas de inestimável valor afetivo. Incluindo uma cabeça de leão enorme, preta, feita de metal, que adoraria ter hoje em meu gabinete. Mas sua história verdadeira, quem ele foi, o que pensava, como eram as ruas da cidade que então percorria, isso eu nunca consegui depreender. Sei por alto que seus pais vieram da região portuguesa de Trás-os-Montes, daí o forte sotaque. 

Por incrível que pareça, sei muito mais sobre meu avô materno, Francisco, embora este tenha morrido prematuramente aos 45 anos, oito antes de eu nascer. Isso se deve a minha mãe - de temperamento mais expansivo que meu pai -, que tratou de passar para nós com um carinho imenso e muitos detalhes quem foi seu pai. Daí eu saber de quem herdei o prazer de olhar a lua na penumbra ou a necessidade de dedicar um amor inesgotável a minha filha. Só que, da mesma forma, esbarro na falta de mais fatos, o que também se dá em relação a minhas avós, Helena e Ondina. De onde vem o Sales que carrego? Seria francês (normando, para ser mais preciso), como indicam alguns sites de pesquisa de sobrenomes que andei pesquisando? Como não tenho linhagem nobre nem sangue azul, minha árvore genealógica é apenas um arbusto de galhos secos.

Esses questionamentos me levam a meus bisavós, paternos e maternos, e a partir daí a situação fica ainda mais nebulosa. São pouco mais do que borrões. Sei, novamente por minha mãe, que minha bisavó paterna Alzira era uma mulher refinada, que "tocava piano muito bem" e gostava de “uma bebida quente”. E que minha bisavó Chica era de "origem mais modesta". Do bisavô paterno Ludgero sei que escreveu um livro, A Família dos Simples, cujo exemplar tínhamos em casa até pouco tempo atrás - mais uma semelhança comigo. O outro bisavô paterno, Jacinto, assim como os maternos, também está envolto em bruma. De Floriano conservo a imagem, bigode largo e escuro, em um retrato na parede da casa da família de minha mãe no interior da Bahia. Do outro, Sizenando, nem isso. Resta a bisavó Odília, a única que conheci, e da qual guardo uma lembrança visual marcante: seus cabelos brancos longos, sua pele morena enrugada e sua casa, cujo quintal enorme e cheio de bananeiras dava para o mar da Cidade Baixa. E quanto aos tataravós, dos quais nem sei o nome?

Sei que essa ignorância em relação a nossos antepassados faz parte do curso natural do tempo. Mas acho injusto que saibamos tão pouco de pessoas que de certa forma moldaram quem somos. Os poucos exemplos acima demonstram isso, o quanto deles sobrevive em mim, no meu jeito introspectivo, nostálgico. A pergunta permanece: de onde eu vim? Quem eu sou? Sei que trago a Europa em minha alma, isso me é claro, mas que parte dela? Será que ainda existem vestígios por lá? Quem sabe um pequeno cartório numa cidadezinha de Trás-os-Montes, informando que em determinado dia, mês e ano um jovem português deixou o país para emigrar rumo ao Brasil. Ou na Normandia, no Alentejo, na Ilha da Madeira, sei lá. 

Fico imaginando como poderia começar uma busca nos moldes da empreendida por Carrére, as pessoas com quem poderia falar, os documentos e cartas ainda existentes, mas acho que perdi tempo. Muitos parentes que poderiam ter fornecido informações preciosas já foram embora, sendo o principal deles meu pai, que tão pouco nos contou de seus pais e avós, talvez porque a relação, ali, nunca tenha sido tão afetuosa quanto a de minha mãe com os seus. O que tiro de tudo isso, dessa busca que sei que vou acabar não empreendendo, é a tristeza de perceber que todos eles estão relegados ao oblívio. Como sombras num retrato antigo. Como eu, daqui a 200 anos.