segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

L’Enfant terrible


Hoje, quando observo minha filha brincar o dia inteiro com as amigas, criando laços de amizade como quem masca um chiclete, percebo o quanto fui uma criança introspectiva e, de certa forma, infeliz. Digo de certa forma porque contei sempre com o afeto irrestrito de meus pais e irmãos, e seria injusto atribuir minha infelicidade a algum fator externo. Mas o sentimento de inadequação e a timidez (gigantesca, ao ponto de mal conseguir sustentá-la nos ombros) fizeram de mim uma criança ensimesmada, com pouquíssimos amigos na escola e nenhum na vizinhança. Passava as tardes brincando com bonequinhos de plástico, conversando com meus passarinhos ou devorando revistinhas em quadrinhos, mais tarde substituídas pelo livros da coleção Vaga-Lume. Quando um colega de sala pedia meu telefone, eu invariavelmente informava o número errado, por temer que algum dia ele resolvesse ligar. Uma vez esqueci de fazer isso, e quase entrei em desespero quando disseram que a ligação era para mim. Por passar tanto tempo sozinho, desenvolvi uma capacidade de abstração que até hoje me acompanha. Dificilmente consigo me manter concentrado em alguma coisa por muito tempo sem que a mente de uma hora para outra comece a divagar, e quando dou por mim estou lendo sem ler ou escutando sem escutar. Só mesmo um cotidiano assim para incutir num garoto de 10 anos o desejo de escrever um livro. Meu primeiro sopro literário, A Ilha dos Bananais era uma história de piratas e índios guerreiros ambientada numa ilha em pleno Alasca. Não me pergunte como poderia haver uma ilha cheia de bananas numa das regiões mais gélidas do planeta. Esse livrinho, originalmente manuscrito, foi transformado por meu pai numa edição datilografada, com capa e tudo, que conservo ainda hoje comigo.
O processo de transição para a adolescência foi ainda mais doloroso. Era muito culto e bem-informado para a minha idade (o que na juventude é um defeito, e não uma virtude), e acabei tendo que “emburrecer” um pouco para me enquadrar em uma ou outra turma. Fiz parte de várias, mas sempre me sentia ou um estranho no ninho ou um peixe fora d’água. Já não dava o telefone errado, mas em compensação os dilemas se tornaram mais complexos, como o processo de seduzir garotas ou a necessidade de mostrar virilidade diante de caras muito mais fortes e safos na arte dos cascudos. Sofri muito, é fato. Acredito, de qualquer forma, que não ficou nenhuma seqüela, embora até hoje tenha a sensação de que o mundo não foi feito para gente como eu. Mas tudo bem, minha filha está me vingando.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

I remember Clifford


Ontem fiquei deitado no escuro, fumando um charuto na rede da varanda, ouvindo Clifford Brown. Poucos músicos de jazz me emocionam tanto (Miles, Coltrane e talvez Thelonious e Peterson são outros) quanto esse trompetista genial, morto aos 25 anos num acidente de automóvel. Sim, 25 anos. Enquanto ouvia o fraseado cálido, impregnado de lirismo e sentimento, dos temas que ele construía amparado por uma orquestra de cordas (o disco é Clifford Brown with strings), fiquei imaginando o quanto Clifford ficaria surpreso ao saber que em 2009, 52 anos após sua morte, um homem no Brasil, e ainda por cima branco, estaria se comovendo com a nobreza e sofisticação da sua música.

Isso porque Brown – negro, discriminado numa terra racista e dotado de poucos recursos financeiros (numa época em que o jazz ainda não produzia milionários, com raras exceções) – morreu sem ter plena idéia da sua avassaladora importância para o curso do jazz nas décadas seguintes, embora já fosse reconhecido como grande em vida. Foi uma influência tremenda para outros trompetistas, embora nenhum toque como ele, formulando frases contínuas sem parar para respirar, como se assobiasse uma canção de ninar.

É claro que não sou seu único admirador nos dias de hoje, e certamente haverá muitos outros daqui a 52 anos. Luiz Orlando Carneiro, o melhor crítico de jazz do Brasil (escreve aos domingos no JB), põe Brown ao lado de Dizzy Gillespie e Wynton Marsalis como os maiores trompetistas da história, à frente de gente como Lee Morgan, Kenny Dorham e do próprio Miles Davis, o mais bem-sucedido de todos eles.

O mais próximo que encontrei do estilo de Clifford Brown foi seu discípulo confesso Louis Smith, também excelente, que tocou com Horace Silver em Newport no ano de 1958 (disco lançado recentemente no Brasil) e gravou um ótimo disco, o Here comes Louis Smith, o qual infelizmente só possuo em versão pirata. Mas Clifford é único. Dizem que era um sujeito generoso, boa-praça, o que não duvido. Seu jeito de tocar era típico de quem estava de bem com a vida. Pena que a vida não estava de bem com ele.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Informar é preciso, refletir mais ainda


Toda vez que acesso um site de notícias e me deparo com nacos de informações superficiais, dispostos numa hierarquia sem pé nem cabeça, percebo que ainda vai demorar bastante para que a internet substitua a mídia impressa como fonte principal de informação – é claro que me refiro aqui ao leitor que busca algo além de notas sobre os participantes do Big Brother ou comentários leigos sobre os assuntos mais diversos, e não aquele para quem informar é preciso, refletir não é preciso. Ao mesmo tempo, é curioso notar como os meios de comunicação impressos estão perdidos nessa batalha por segundos de atenção dos que precisam se informar. O mais lamentável na imprensa dos dias de hoje é a derrocada (ao que parece irreversível) das revistas de grande circulação. Empenhada em se firmar como um veículo de direita (detonando, nesse processo, qualquer coisa que esteja direta ou indiretamente ligada ao extremo oposto), a Veja deixou há muito de ser uma revista séria, embora ainda seja a mais completa na sua categoria. Inócua, a Época é incapaz de incutir no leitor a necessidade de comprar a edição da semana seguinte. A Istoé já era (saudade dos tempos de Istoé/Senhor, com aqueles editoriais de Mino Carta que eu não perdia quando era adolescente). Falando nele, tem a Carta Capital, que conheço pouco, mas que nunca me seduziu de verdade. Quanto às revistas mais segmentadas, a Bravo! (que em outros tempos foi uma publicação excepcional) hoje se propõe desesperadamente a pautar o debate cultural, ou ao menos fazer parte dele, sem sucesso. E a Caros Amigos ao que parece optou por uma tática de guerrilha, recheando suas páginas com propaganda de esquerda escrita por dinossauros entrincheirados. A melhor delas, com ótimas reportagens e originalidade editorial, é a Piauí, mas mesmo esta se ressente de um brilho, um charme intelectual que nos faça voltar sempre às bancas para comprá-la.
A informação mais aprofundada, criteriosa e sobretudo crítica é encontrada nos grandes jornais (Folha, Estado e O Globo). São grandes veículos, sóbrios quando devem ser, modernos (em maior ou menor medida) quando se apresenta a ocasião. É impossível, hoje, prescindir de pelo menos um deles, mesmo que você tenha que usar a internet para acessá-los. Porque, obviamente, você precisa saber o que gente como Dora Kramer, Elio Gaspari, Verissimo, Luiz Carlos Merten, Clóvis Rossi, Fernando Calazans, Tostão, Arthur Dapieve, Luiz Orlando Carneiro (este do JB), só para citar alguns de minha preferência, está pensando. E não o que o leitor Fulano de Tal acha de tal notícia. Os homens que pensam a imprensa parecem ainda não ter descoberto que os sites noticiosos da internet (Uol, Bol, Terra etc), assim como a TV, não conseguem ou não estão dispostos (assim como seus leitores de ocasião) a se aprofundar em matérias mais sofisticadas, de compreensão menos didática. Seu diferencial, e eles exploram isso ao máximo, é a informação em tempo real. Um exemplo nítido de jornal impresso rigidamente subordinado a esses novos tempos é o Correio, daqui de Salvador. Em suas páginas, o leitor encontra (à exceção de duas ou três páginas logo no início) basicamente uma versão impressa de notícias pescadas na internet. E o que é pior: desatualizada. Não há análise, reflexão, apenas o fato que você já cansou de ver. É por isso que o quadradão A Tarde ainda leva larga vantagem na disputa. Ainda mais porque sua revista dominical, a Muito, que começou trôpega e insossa, ganhou consistência nos últimos tempos. Mas, claro, estamos falando de outra realidade (não só no aspecto salarial, mas também no preparo intelectual dos nossos jornalistas), e não vai ser hoje nem amanhã que isso vai mudar pelas bancas de cá.

O fim da estrada é sempre o mesmo


Do que é feito o tempo? Que substância é responsável por esse decorrer que não cessa de horas, dias, meses e anos, arrastando tudo ao redor, sem misericórdia ou compaixão? Por que, por mais que vivamos, nosso tempo sobre a Terra é tão curto? Esses questionamentos, que movem a humanidade desde que ela adquiriu consciência própria, são a matéria-prima de O curioso caso de Benjamin Button, filme de David Fincher baseado em conto de F. Scott Fitzgerald. Apesar de ter lido quase todos os livros de Scott, não conhecia esse conto, que fala de um homem que nasce velho e vai rejuvenescendo com o decorrer dos anos, até morrer na forma de um bebê. Fincher transformou essa história num filme lindo (não há adjetivo mais apropriado neste caso), que mexe profundamente com nossos sentimentos mais primevos. É comovente a forma com que Benjamin percorre solitário a pista de uma estrada, caminhando inapelavelmente para a juventude, enquanto o lado contrário, congestionado, ruma para a ruína física e mental do ocaso. Mas é através do desabrochar de uma relação impossível com a mulher que sempre amou que ele vai perceber que, mais do que qualquer outra coisa, é a solidão que vai acompanhá-lo até o fim. Como é possível amar alguém que percorre a pista contrária, se o cruel processo de envelhecimento de um é espelhado na plenitude física do outro? Montesquieu escreveu que “é uma infelicidade que existam tão poucos intervalos entre o tempo em que somos demasiado novos e o tempo em que somos demasiado velhos”. Nada mais dolorosamente certeiro. Benjamin Button viveu intensamente esses intervalos. Mas a conclusão a que chegou é que, mesmo rejuvenescendo a cada ano, ele passou ou iria passar pelo mesmo processo de quem envelhece: perder quem ama, perder paulatinamente a consciência e, por fim, perder a si mesmo.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Eu não nasci para voar


Sinto um alívio danado quando fico sabendo que um acidente aéreo terminou bem, sem mortos ou feridos graves, como o que aconteceu ontem em Nova York (a aeronave afundando mansamente no rio Hudson enquanto os passageiros eram salvos pelos barcos de resgate). É quase como se eu ou alguém que amo estivesse lá, enfrentando a queda brusca, o impacto na água gelada, o pânico coletivo. Sei exatamente quando o medo de voar se apossou de mim, e até hoje não me abandonou: foi numa viagem de Porto Alegre para São Paulo, há dois anos. Enquanto ganhava altura após a decolagem, o avião descia repentinamente alguns metros, arremessando minhas vísceras direto na garganta. É uma sensação horrível, agravada pela ausência de base: não temos onde nos segurar, só resta esticar bem as pernas e grudá-las nas paredes ou nas poltronas da frente. Depois disso nunca mais viajei relaxado, e da última vez – uma plácida viagem entre Porto Seguro e Salvador – eu passei todos os 40 minutos colado na minha poltrona, olhando desesperado para baixo e dizendo a mim mesmo: “Calma, daqui a pouco você vai estar lá embaixo, falta pouco”. Em vão. Com a respiração tensa e todo o corpo retesado, eu me vi próximo de uma crise de pânico. Mal consegui pedir um copo de água à aeromoça. Depois dessa, sei que não consigo enfrentar outro vôo de peito aberto.
O medo de voar é basicamente uma manifestação irracional da nossa mente que acaba proliferando pelo corpo todo. Quando entramos num avião, nos tornamos completamente vulneráveis. Caso alguma coisa dê errado, nada que a gente faça lá dentro (berrar, rezar, chorar ou apenas fechar os olhos) vai interferir no resultado final. É essa vulnerabilidade inerente ao ser humano que me apavora. A impotência diante da possibilidade de uma morte horrível. Mas tenho certeza de que o pavor recrudesceu após os dois últimos grandes acidentes em São Paulo e no Mato Grosso (Lembro que não consegui dormir duas noites seguidas pensando nas pessoas que morreram em Congonhas, e também naquelas que as perderam). Porque, se o avião é o meio de transporte mais seguro, aqui no Brasil essa segurança está longe de ser absoluta, como todos ficamos sabendo após a crise aérea dos últimos anos, que ainda não acabou. O que até então parecia um céu de brigadeiro virou um horizonte turbulento com a revelação dos quase acidentes, da leviandade da Anac e da Infraero, da morosidade do governo, da incompetência e despreparo dos operadores de tráfego e da irresponsabilidade das companhias. Com tamanha falta de respeito ao ser humano, entrar deliberadamente num bólido que voa a mais de 500 km/h e chega a 20 mil metros de altitude não é exatamente como pegar um táxi ali na esquina. De qualquer modo, preciso me tratar desse medo. A não ser que pretenda conhecer o mundo através de livros, filmes e fotos. Pensando bem, pode até ser uma boa idéia.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Nós também temos Gomorras


O que mais nos incomoda em Gomorra, o contundente (embora um tanto superestimado) filme de Matteo Garrone inspirado em livro de Roberto Saviano, é que temos plena consciência de que aquela realidade está muito próxima de nós. Brasileiros e italianos comungam a desdita da corrupção crônica, do crime organizado enraizado em várias instâncias da sociedade, das brechas nas leis que permitem arbitrariedades ou torpezas das mais diversas. Mas ao contrário da Itália, que atenuou a libertinagem criminosa com a operação Mãos Limpas, tirando dezenas de mafiosos de suas mansões e os colocando em cubículos, aqui o sistema judiciário deficiente – quando não corrupto – permite a continuidade eterna de variados espécimes de canalhas: nenhum entra em extinção.
Gomorra já foi comparado – até para efeito de contraposição – à trilogia O Poderoso Chefão. Uma comparação equivocada, pois se tratam de abordagens radicalmente distintas, em todos os aspectos, do universo mafioso. A saga de Mario Puzo brilhantemente adaptada por Coppola (revi recentemente o primeiro filme e renovei minha admiração) expõe os intestinos de uma família da Cosa Nostra que comanda um império. No filme de Garrone não há famílias, núcleos ou mesmo quadrilhas, apenas fragmentos deles. São os tentáculos de uma atuação criminosa invisível (por ser tão vasta e pulverizada) que se expõem aos olhos do público. O resultado é uma realidade sufocante: homens, mulheres e crianças à beira da adolescência paralisados ou cooptados pela Camorra, vivendo miseravelmente em conjuntos habitacionais nos arredores de Nápoles. Estamos, como diria Borges, num subúrbio do inferno.
O Rio de Janeiro é outro subúrbio, assim como Salvador (o território do demônio propriamente dito possui outros endereços: Darfur e Gaza, por exemplo). O que mais me surpreende no Brasil é a quantidade de gente vivendo direta ou indiretamente de atividades ilícitas. É o que corrói o país, que mina as soluções bem-intencionadas, as iniciativas solidárias, a perseverança dos que não têm nada e esperam ter um dia, ao menos para os filhos. O tráfico só funciona com tanta desenvoltura porque conta com consumidores fiéis, policiais comprados e políticos diretamente interessados na perpetuação dessa realidade. Uma vez, quando passei um período trabalhando em Fortaleza, perguntei a uma pessoa de dentro do círculo do poder local por que não se conseguia acabar com a prostituição infantil, vista às claras na orla da cidade. Ele respondeu que o governador tentou combatê-la logo no início de sua gestão, mas acabou desistindo quando descobriu que a exploração sexual de menores era um excelente negócio para taxistas, agentes de viagens, donos de hotel e até deputados. Ou seja, havia uma cadeia alimentar solidamente instalada na cidade, embora as únicas que realmente acabavam comidas eram as meninas (trocadilho infame mas necessário neste caso). Claro que não tem nenhuma novidade nessas afirmações, estou chovendo no encharcado. O problema é que nunca seca. Nossa indignação é estéril, não tem qualquer efeito prático. Aqui a violência, sobretudo a policial, é tratada com naturalidade, quase como uma reação adversa inerente à atividade de combater o crime. É essa nossa complacência, essa tendência fatalista ao comodismo, que nos faz brasileiros. E que faz com que nos identifiquemos de cara com o que há de pior na Itália.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Somos todos cordiais


Bendito fruto, que revi ontem na Globo, é um dos filmes mais subestimados da safra recente do cinema nacional. Crônica social aguda, travestida de uma aparentemente ingênua comédia de costumes, o longa aponta para a chaga silenciosa do nosso racismo cordial, explicitado na relação, digamos, informal, entre Edgar, um dono de salão branco (Otávio Augusto), e sua amásia negra Maria (Zezeh Barbosa). Maria é um misto de esposa, empregada e cria da família dele, não se sabe bem. Ou melhor: não interessa saber. O mais premente no filme de Sérgio Goldenberg é exatamente mostrar esse não-dito. Esse preconceito que não ousa dizer o nome. Ao contrário dos Estados Unidos, onde o racismo é exposto sem meias-palavras, tanto que até bem pouco tempo banheiros públicos e bebedouros separados estampavam as palavras “white” e “coloured”. No Brasil seria impossível existir uma Rosa Parks, a mulher que, na década de 50, se recusou a sentar num dos bancos reservados aos negros no fundo de um ônibus, dando início a uma nova era no combate ao preconceito racial na América. A Rosa Parks brasileira sempre pôde andar nos ônibus, assim como embarcar nos elevadores sociais e freqüentar bons restaurantes, mas não o fazia, por não suportar o olhar reprovador e silencioso (voltamos ao não-dito) dos brancos. Quando é pronunciado pelas bandas de cá, o racismo se manifesta na forma do escracho, em frases tipo “como negra ela é bonita” ou, de forma ainda mais explícita, em versos como “Mas como a cor não pega, mulata/mulata eu quero o teu amor”. Nós, brasileiros brancos, padecemos de um racismo atávico, por mais que tentemos banir esse sentimento que é quase instintivo. É mais fácil se livrar daquilo que nos é imposto claramente, como o ateu que recusa a fé católica na qual foi criado durante toda a infância, justamente por ter se impregnado dela esse tempo todo. Livrar-se de algo apenas sugerido, feito de gestos e comentários indiretos ou eufemísticos, é muito mais complicado. Tendemos intimamente a achar que a mulher negra no elevador é uma serviçal, ou que o rapaz negro de camisa branca no bar é a pessoa a quem devemos pedir uma cerveja. Arrancar esse aspecto torpe de nossa personalidade requer um esforço que vai além da racionalidade, e ainda vão passar algumas gerações até que possamos olhar para um ser humano de pele negra e ver exatamente o que ele é: um ser humano. Claro, a aberração pré-abolição ainda está muito presente em nossa sociedade, sobretudo na Bahia e no Rio, ambos estados de maioria negra. Basta penetrar em qualquer uma das invasões que “maculam” as grandes avenidas de vale de Salvador: a maioria negra maciça vivendo de forma subumana, reproduzindo a nossa miséria secular. Sempre se convencionou pensar que o nosso racismo era menos agressivo que o congênere exacerbado dos norte-americanos, por não ter gerado grandes conflitos inter-raciais ou disseminado oficialmente a segregação. Mas, aos poucos, a conta vem sendo cobrada. Não há nada de afável no ódio que move o bandido preto sem pai nem mãe que atira sem dó na mulher branca com um belo carro e uma família modelo. Da mesma forma que a relação entre o patrão branco de Bendito fruto e sua concubina de cor é pautada pelo não-dito, o ódio do bandido é uma forma velada de racismo às avessas. Num país onde a desigualdade social e a violência só fazem aumentar, torna-se ainda mais palpável o fato de que estamos vivendo num regime de apartheid. Mas é claro que ninguém vai dizer isso abertamente. Afinal, somos todos cordiais, esqueceu?

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Banquetes para o espírito


Tem coisas que só a maturidade nos traz. O prazer de sorver um bom vinho chileno é uma. Degustar um gim inglês é outra. Fumar um charuto cubano é mais uma. Com Hemingway também é assim. Li O velho e o mar aos 15 anos e As ilhas da corrente e O sol também se levanta aos 20. Me pareceram modorrentos, sem alma, frios, e não entendia todo o culto dedicado ao escritor. Aos 28 voltei a ele: os livros – que já eram de segunda mão – agora bem mais amarelados. Descobri um mundo. Depois do Papa, meus ídolos de juventude (Kerouac, Bukowski, Salinger) viraram apenas isso: ídolos de juventude. Uma etapa tinha sido transposta. Apreciar Hemingway (a foto acima é da casa dele), exige um cérebro – e também um fígado – devidamente amaciado por anos de decepções, frustrações e realizações. Com o jazz ocorreu algo parecido. Até os 30 anos eu ouvia aquilo e nada acontecia. Como se fosse a voz de um javanês tentando se comunicar comigo. Mas então um dia, após um bom tempo pesquisando novas sonoridades, eu coloquei o Kind of Blue de Miles Davis no CD do carro. O javanês acabava de falar o meu idioma, e sem sotaque. Uma aventura sensorial e intelectual se descortinava à minha frente, numa combinação sem arestas de trompete, sax, baixo, bateria e piano, todos dialogando sem gritos, apenas com sussurros. Depois do jazz, o rock se tornou definitivamente o que já vinha sendo até então: música de adolescente. Desde 1990, quando o cheiro de espírito juvenil do Nirvana me desconcertou, nada mais me disse a que veio no mundo dos três acordes. Simplesmente não tenho paciência, embora ainda adore o Creedence e vez por outra acorde com vontade de ouvir Shine a light, dos Stones, como aconteceu na semana passada. Mas são momentos esparsos. O caldeirão de lixo reciclado chamado cultura pop não me diz nada: as cifras milionárias, os ídolos virtuais, os escândalos forjados. Passo ao largo dessa baboseira toda, e talvez por isso me sinta um estrangeiro, passageiro de algum trem que não passa por aqui, para citar uma banda que amava nos meus verdes anos. E ainda amo, já que a memória afetiva, essa não se apaga.

O Verão chegou

Cinquenta pessoas assassinadas nos primeiros cinco dias do ano em Salvador. É o Verão da Bahia chegando com tudo, movido a crack, ausência de premissas morais e uma brutal desigualdade social, sem que nada de efetivo seja feito para mudar esse cenário. O Rio é logo ali.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Homens em tempos sombrios


O mundo é bárbaro. E ainda bem que existe Luis Fernando Verissimo para nos ajudar a entendê-lo (ou melhor, a entendê-lo cada vez menos, já que não parece haver lógica nessa nossa aventura errática pela Terra). É comovente a sua perplexidade frente a uma realidade cada vez mais refratária à inteligência e aos princípios morais básicos que sustentaram até hoje o que conhecemos por civilização. Em seu novo livro, uma coletânea de brilhantes artigos intitulada justamente O mundo é bárbaro – E o que nós temos a ver com isso, Verissimo nos leva a uma jornada fragmentada pelas desditas do mundo moderno. Ele é capaz de, numa única frase, atingir ao mesmo tempo o músculo da face e o córtex cerebral do leitor. Como se o sorriso cúmplice nos lábios viesse acompanhado invariavelmente de uma pulga atrás da orelha. Suas crônicas seguem uma fórmula bastante eficaz, que começa com uma parábola aparentemente inocente (das teorias de Stephen Hawking à anedota da velhinha contrabandista) para em seguida entrar no que realmente interessa. Mas interessa mesmo? E a quem? O subtítulo do livro faz uma alusão à indiferença atual frente a um mundo sem rédeas. Enquanto as bombas de fragmentação ou as bolsas em queda livre não nos atingem, está tudo bem. Mesmo que pessoas estejam morrendo ou famílias falindo em algum canto do globo por causa delas. Verissimo é um intelectual de esquerda, crítico ferrenho da globalização e da onipresença do capital especulativo sem escrúpulos que destrói economias sólidas, sobretudo as pessoais. Na época do Mensalão do Governo Lula percebia-se nele uma perplexidade impossível de ser camuflada. Como todos nós que havíamos dado nosso voto e nossa confiança irrestrita ao ex-torneiro mecânico, ele também estava perdido. A diferença é que não embarcou no silêncio dos intelectuais, e expôs as vísceras (embora com um certo pudor) do escândalo e dos descaminhos que marcaram o primeiro governo de Lula. Vale a pena ler O mundo é bárbaro como eu li: dividindo a cabeceira entre ele e Era dos extremos, de Eric Hobsbawm. Ambos são homens que vivenciaram em parte (o anglo-egípcio mais, o brasileiro menos) as atrocidades do século 20, e cultivaram ao longo do tempo uma consciência essencialmente humanista. Dessa forma, os textos curtos de Verissimo ganharam para mim um importante substrato nos longos (e sedutores) capítulos de Hobsbawm. Até porque ambos devotam boa parte de seus livros a tentar compreender por que, a partir da Segunda Guerra, a morte de civis se tornou um componente essencial nos grandes conflitos. É a mesma pergunta que, em pleno século 21, eu me faço: por que gente inocente tem que morrer em massa a cada erupção bélica que pipoca a toda hora em toda parte do mundo? Por que o assassinato de crianças, mulheres e homens deixou de ser um “efeito colateral” para se tornar o fundamento de todos os conflitos iniciados desde a era Hitler? Com a palavra, Verissimo: “Hoje a guerra psicológica é o pretexto legitimador para quem usa o terror por qualquer causa, incluindo o novo e curioso conceito de bombardeio humanitário desenvolvido pela Otan. E cada vez que vemos uma das vítimas do terror, como o último cadáver de uma criança judia ou palestina sacrificada naquela guerra especialmente insensata, pensamos de novo nos tempos em que só os soldados morriam nas guerras, e ainda era possível ser um espectador, mesmo distraído como a dona de casa de Waterloo, da história. Ou ser inocente.”

sábado, 3 de janeiro de 2009

As espirais da história

Ninguém em sã consciência poderia achar que o fascismo se extinguiria completamente após o último tiro disparado em 1945, e as décadas seguintes só fizeram confirmar que o mal vez por outra dá as caras, varrendo tudo à sua volta. O massacre israelense na Faixa de Gaza, que chega ao oitavo dia com centenas de mortes de civis, é mais uma demonstração de maldade bruta e, portanto, de fascismo. O que se promove na região é, guardadas as proporções com a Segunda Guerra, o holocausto de um povo, assistido com indiferença pelas grandes nações que deveriam coibi-lo. De certa forma, o episódio nos remete à segunda metade da década de 30, quando Hitler foi progressivamente se apropriando à força de territórios alheios sob o olhar complacente dos vizinhos. Deu no que deu. Claro, não estamos à beira de uma nova guerra mundial, mas vislumbramos um futuro sombrio, com estilhaços para todo lado. E desta vez os judeus não são as vítimas.