segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Hora de morrer



Imagino que dentro de alguns séculos a morte perderá seu status de certeza, sendo rebaixada a uma mera possibilidade. Sei lá, algum mecanismo avançado, desenvolvido por cientistas lunáticos, capaz de adiar indefinidamente o envelhecimento das células e tecidos até o ponto em que nos manteremos eternamente no apogeu dos 30 anos – ao menos para os mais abonados, acredito, que torrarão metade de suas fortunas para continuar aproveitando o que a outra metade oferece. Ou quem sabe o desenvolvimento de órgãos sobressalentes evoluirá tanto que nossos pulmões, corações, rins, fígados e até cérebros se tornarão nacos de carne e nervos descartáveis, facilmente substituídos por outros órgãos nascidos a partir de nossas placentas ou medulas ósseas. Poderíamos até trocar de corpo, quando o casulo em que estamos confinados se tornar obsoleto ou defeituoso. Quanto tempo para atingirmos esse grau de evolução? Não faço idéia. Quinhentos, oitocentos, mil e duzentos anos talvez, ou até um pouco mais, já que mesmo com tanta evolução ainda hoje não conseguimos sequer repor a vida de uma ameba quando ela dá seu derradeiro suspiro. Ainda tateamos no escuro quando é a imortalidade que está em jogo, e qualquer notícia que leio sobre o assunto me faz lembrar de imediato as profecias de Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo.

Por mais impalpável que pareça aos nossos corações e mentes nascidos na metade final do século 20, a imortalidade me parece algo menos absurdo do que, por exemplo, uma viagem no tempo, mesmo que digam que fisicamente ela é possível. E, no caso de se concretizar, assistiríamos à derrocada de algo que acompanha o ser humano desde que ele deixou as cavernas e passou a temer a escuridão: a fé. Com a vida eterna convertida numa banalidade, o que restaria de Deus? E, conseqüentemente, o que seria do mundo sem Deus, já que mais de 90% dos habitantes da Terra acreditam em algum tipo de força superior? Tudo seria permitido, como previu Dostoievski, antevendo o caos, ou nos encontraríamos enfim com nossa sina de seres predestinados, escolhidos entre milhões de bolas que vagam pelo espaço, destituídas da mais reles forma de existência? Mais: como ficaria a situação do planeta sem a lei natural que expulsa alguns seres do mundo para que outros possam habitá-lo? Um Malthus futurista diria certamente que a comida produzida não será capaz de alimentar todos os que nascem e os que não morrem. Só a comida? Claro que não. Assistiríamos provavelmente a uma catástrofe crônica, na qual as guerras e epidemias seriam saudadas como benéficas para a humanidade.

A mim interessa outra coisa. Que espécie de seres nos tornaríamos? Até onde restaria o eu original após tantas mudanças de órgãos e, principalmente, de carapaça? Pois o que somos nós afinal? Será que destituídos dos nossos corações, olhos e línguas originais continuaríamos sendo nós? Não sei. Bem, o que sei é que não sou apenas alma. Meus ossos me doem, meu fígado engorda pelo abuso de vinho, meus olhos míopes presenciam o fascínio do crescimento de minha filha. Sem eles, o que resta de mim? O que resta de mim sem minhas mãos que teclam este texto, sem meus cabelos cacheados que embranquecem aos poucos? Onde está localizado o disco rígido que guarda meus pensamentos e minhas memórias? Somos o todo ou apenas os 21 gramas que nos abandonam quando deixamos a vida?

Em face de tudo isso, a imortalidade me parece apenas um delírio estúpido, impossível de ser concretizado. Até porque não morremos de uma hora para outra. É um processo lentíssimo, que se inicia lá atrás, quando o espermatozóide rompe o invólucro do óvulo e a fecundação dá origem a nós, como dá origem aos cachorros, aranhas e jacarés. Morremos um pouco quando perdemos alguém, quando enterramos um desejo não realizado, quando presenciamos a violência inabalável que nos cerca e invade, quando sentimos que o mundo não é mais um lugar feito para pessoas como a gente. Enfim, por mais injusto que isso pareça, a extinção faz parte da vida, é seu curso natural, e a nós, animais primitivos de um presente/passado bárbaro, só resta abaixar a cabeça na chuva, como andróides de um filme de Ridley Scott, e balbuciar: hora de morrer.

6 comentários:

Nina disse...

Muito interessante seu texto e suas colocações, Paulo, especialmente, a respeito da fé. Parabéns!

A mim, não me interessa a imortalidade (embora, paradoxalmente, talvez a desejasse para aqueles que amo...). Mas gostaria que ainda em meu tempo de vida, fosse encontrada uma solução para a disparidade entre as tantas mudanças físicas e as poucas mudanças internas. Sabedora que sou das transformações que ocorreram e ocorrem, lentamente, não entendo como ainda estou tão próxima da menina de tantos anos atrás, em meus desejos, sonhos, medos e até mesmo, ações. Espero que antes de atingir a tal "3ª idade", já exista uma solução que adeque meu comportamento à minha aparência (e não falo aqui de botox, preenchimentos e cirurgias plásticas), de tal forma que não precise ouvir de meus netos: ai, vó, na sua idade, isso não fica bem!

Bjo!

Paulo Sales disse...

Obrigado, Nina.
A verdade é que ficamos entre a cruz e a espada. A idéia de morrer não me é nem um pouco animadora, embora já esteja me acostumando com ela. E o que seria o não-morrer? Enfim, não tem escapatória. Uma vez escrevi que quando a gente começa a entender o mundo já é hora de dar adeus a ele. Ou seja, somos pouco mais que crianças quando já estamos próximos do fim. Embora ache que o conceito de velhice mudou muito nos últimos anos, e quem sabe quando chegarmos lá poderemos fazer algumas loucuras juvenis sem nos preocuparmos com a censura dos netos.
beijo

Diálogo de Pedras disse...

Eis um dilema muito antigo da humanidade. A grande maioria não acredita que somos finitos. Eu particularmente não tenho medo de morrer bem velinho e relativamente lúcido. O que me assusta é a morte súbita, não a causada pela natureza, mas aquela originada pela violência do ser humano.

Muito bom seu blog -parabéns

Paulo Sales disse...

Obrigado, meu caro.
Eu mesmo custo acreditar na nossa finitude. É difícil, e já perdi noites quando era adolescente me deparando com essa certeza. Com o tempo vira só um arrepio, um estremecimento. Mas a morte causada pela violência (ou por um acidente) é mesmo muito mais traumática.
abraços

Marco Gavazza disse...

Paulo, acho que a imortalidade seria acima de tudo, chata, muito chata. A mim por exemplo, ter vivido entre 1890 e 1950 teria sido suficiente e satisfatório. Não teria paciência para absorver diariamente que o válido ontem jã não vale mais hoje, por toda a eternidade. Acho que nem Deus suportaria tanto up grade. Parabéns pelo magnífico texto, tão cheio de emoção que fez o monitor do note book vibrar discretamente. Seu blog já esta nos meus "Favoritos". Para sempre?

Paulo Sales disse...

Obrigado, Gavazza, pelo elogio e pelo comentário lúcido sobre a inutilidade de ser imortal.
Compartilho desse sentimento de inadequação em relação à época em que vivemos, e claro que a primeira metade do século 20, ao menos em tese, teria lá seu charme. Imagine Nova York nos anos 20, Paris nos anos 30 e o Rio nos anos 50. Uma boa, não?
Grande abraço.