terça-feira, 28 de abril de 2009

Por um pouco de ignorância



Há muitos aspectos positivos em poder escrever num caderno de cultura. A possibilidade de expor idéias, conceitos e obsessões. A troca de experiências e impressões com os colegas de redação. A oportunidade de conhecer pessoas extremamente sensíveis e talentosas no mundo das artes. A maciça quantidade de informação que absorvemos. Mas de uma coisa não sinto a menor saudade: a busca incessante e a qualquer custo por tudo que acaba de ser gravado, escrito ou lançado. Durante muito tempo, os livros que comprei ao longo de décadas ficaram esperando nas prateleiras a sua vez, enquanto me dedicava à leitura apressada de lançamentos. Com música era ainda pior, já que nos últimos tempos só queria me embrenhar no mundo do jazz, e às vezes precisava ouvir discos chatíssimos de artistas idem. No cinema nem se fala: filmes insípidos, assistidos após uma rotina exaustiva de trabalho duplo.
Descobri, enfim, que detesto me pautar pelo novo. Recentemente, os jornais e revistas de cultura dedicaram um espaço enorme ao mais recente disco de Caetano Veloso. Nada contra essa postura editorial, até porque a obra e a figura de Caetano a justificam. Mas não senti a menor vontade de conhecer esse disco. Do trabalho anterior do compositor tinha ouvido uma ou duas músicas – uma delas, que falava da inveja dos orgasmos múltiplos das mulheres, me pareceu uma bobagem sem tamanho – e deste último li só a letra – patética – de uma tal Base de Guantánamo. Mas o problema aí não é (se bem que até pode ser) de Caetano, e sim da minha ausência de vontade em conferir tudo que aparece nas lojas de discos, telas e livrarias. Por que trocaria uma obra-prima como Kind of Blue, com suas cinco décadas de vida, ou os discos de música africana que adoro descobrir na internet, para ouvir o novo trabalho de Caetano? Ou do U2? Ou de Zeca Pagodinho?
Até hoje, quase dois anos depois de ter optado por deixar a redação, não consegui recuperar o hábito de ir ao cinema, após tanto tempo freqüentando compulsoriamente as salas três ou quatro vezes por semana – e por outro lado me sentindo na obrigação de preencher em DVD as lacunas de filmes clássicos de diretores geniais que nunca tinha visto. Ufa. Agora vejo o que quero quando quero, e muitas vezes tudo de que preciso é assistir pela vigésima vez à reprise de algum filme que adoro. Hoje mais cedo li no blog de um amigo e ex-colega de faculdade (verbotransitivo.blogspot.com) uma frase de Nick Hornby que versa mais ou menos sobre esse tema, embora não exatamente sobre a imprescindibilidade do novo: “Chega um momento da vida, pelo menos é o que eu acho, em que o sujeito tem de decidir se é um literato ou simplesmente alguém que gosta de ler, e eu estou começando a perceber que os amantes da leitura se divertem mais. O literato tem que ler coisas como ‘Cândido’, caso contrário ficará defasado; amantes da leitura, por outro lado, podem ler aquilo de que estão afim.”
Nem sou fã de Hornby (só li dele o Febre de Bola, que é interessante), mas considero essa frase exemplar. Cada vez menos sinto necessidade ou me sinto na obrigação de ler, ver ou ouvir certas coisas tidas como “obrigatórias”. Pode ser uma espécie de inação, mas creio que a descoberta deve ser intuitiva: a maturidade e o conhecimento adquirido levam naturalmente às grandes obras no momento certo. Já falei aqui mesmo no blog que certos livros e discos não me disseram nada quando os conheci pela primeira vez. Foi preciso um tempo de maturação para que pudesse compreender o verdadeiro significado deles. Por isso, provavelmente nunca terei a oportunidade de desbravar obras que certamente mudariam minha maneira de pensar o mundo. Paciência. Não vou abandonar o ócio, os prazeres etílicos e gastronômicos ou o divertimento puro e simples, como tomar banho de mar, brincar com minha filha ou fumar um charuto, para me tornar um intelectual. Afinal, a vida não pode prescindir de um pouco de ignorância.   

segunda-feira, 27 de abril de 2009

"Uma só criança na rua deveria ser motivo de escândalo, em qualquer sociedade responsável."

Hirokazu Kore-Eda, diretor japonês, autor do filme Ninguém Pode Saber (2004)

sábado, 25 de abril de 2009

Minha pequena e acolhedora trincheira


Nos últimos dias acionei minha memória afetiva ao escutar um disco antigo de Cat Stevens no som do carro, enquanto ia e voltava do trabalho. Sobretudo porque aquelas canções cheias de sinceridade e ímpeto juvenil me trazem reminiscências de um período particularmente agradável da minha vida: os últimos tempos em que vivi em São Paulo, num pequeno e aconchegante apartamento de quarto e sala na Bela Vista. Minha filha ainda não era nascida, e lembro que chegava em casa, tomava um banho, me servia um copo de J&B ou Cutty Sark com gelo e chamava minha mulher para ficarmos sentados numa cadeira de balanço no escuro ouvindo Where do the Children Play, Lady D’Arbanville, Father and Son ou qualquer outra música do velho Cat. Então eu acendia um cigarro, tomava um gole e me sentia reconfortado e ligeiramente sonolento, pronto para mais um dia de trabalho na manhã seguinte. Adorava aquele apartamento. Ficar ali de bobeira lendo o Estadão e ouvindo Pixinguinha nas manhãs de domingo. Assistir aos jogos do Flamengo (foi lá que passei a noite mais triste da minha veneração pelo Manto Sagrado, quando perdemos uma final de Copa do Brasil para o Grêmio). Ler um livro na cama (Havana para um infante defunto, O Teatro de Sabbath e Uma Luz em meu Ouvido foram alguns deles). Ou então sair para comer um pastel com caldo de cana no feirão da Ceagesp e depois passear na Paulista. Ah, o prazer de acender um cigarro e olhar as pessoas, fuçar os livros usados vendidos na calçada e tomar um expresso no Café Creme. O olhar retrospectivo faz tudo isso adquirir um tom menos sombrio e mais nostálgico, mas lembro bem que na época apreciava muito esses prazeres frugais, assim como apreciava as noites quase diárias de boemia no Puppy, meu santuário particular, ou uma pizza na Speranza, ou um tutu com torresmo no Consulado Mineiro, ou uma moqueca de camarão no hoje extinto Bargaço do Largo do Arouche. Também sinto falta hoje das noites inteiras regadas a conversas intelectualmente sólidas (apesar do álcool), dos diálogos que me enriqueciam, criando um intercâmbio de idéias fundamental, quer o tema girasse em torno da genialidade de Romário ou da de Nelson Rodrigues. Talvez por isso goste tanto de voltar a essa cidade caótica e rever meus bons amigos e repetir tudo (aliás, quase tudo) que fazia nos tempos de faculdade. É como um ritual, agora sem o cigarro e sem o pequeno apartamento da rua Rui Barbosa, minha pequena e acolhedora trincheira. Às vezes me pergunto como estaria minha vida hoje se tivesse optado por permanecer na cidade. Não tenho a menor idéia. Mas sei que sentiria uma dor danada se não tivesse estado ao lado de meu pai durante os últimos anos dele, e que a saudade de minha mãe doía demais naqueles tempos de auto-exílio. E, por fim, não imagino minha filha vivendo lá, embora a Salvador deste início de século esteja longe de ser um idílio. De qualquer modo, aquela minha São Paulo particular do final dos anos 90 não existe mais, nem sou mais o homem de 26, 27 anos que perambulava por suas ruas, bebia em seus bares e ouvia Cat Stevens no escuro, no aconchego de uma cadeira de balanço.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Cronicamente inviável

A escória humana veste paletó e gravata, anda de avião e circula ocasionalmente pelos salões do Congresso Nacional. Uma gentinha frívola, assumidamente burra e despida de escrúpulos ou responsabilidades, que só prolifera com a anuência de um tipo de chaga ainda mais grave: o voto dos ingênuos ou dos interesseiros. Ou seja: mais do que um mundo à parte, esse território habitado por lêndeas gordas travestidas de deputados e senadores é na verdade um microcosmo de nossa sociedade estúpida e corrompida, de moral torta, incapaz de se imaginar construindo um país ou mesmo algo que vá além da sua satisfação pessoal imediata. O resultado não poderia ser outro: um Estado cronicamente inviável, celeiro da bestialidade e da barbárie. E quem puder que se agarre ao destroço mais próximo.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Náufrago


O que mais me comoveu em O Escafandro e a Borboleta foi o lamento final de Jean-Do ao perceber que a vida se extinguia. Um lamento resignado, mas nem por isso menos doloroso, de um homem aprisionado no próprio silêncio, após o derrame que o deixou totalmente paralítico – com exceção do olho esquerdo, sua única via de comunicação com o mundo exterior. Dentro da inútil couraça externa que se tornou o seu corpo, havia o infinito de uma mente perfeitamente consciente, capaz até de escrever um livro, ditado com o piscar do olho a uma das muitas pessoas que cuidaram dele com abnegação pungente. Talvez por isso, Jean-Do agarrava-se à vida como um náufrago. Um naco de vida, é fato, mas de qualquer modo uma vida sua, a única a que teria direito dali para a frente, antes que uma pneumonia o levasse de vez rumo à inconsciência eterna.

terça-feira, 21 de abril de 2009

O que fazemos de nós


Por que a necessidade de desbravar o desconhecido, tão freqüente no nosso imaginário juvenil, se esvai com o passar dos anos até quase sumir, como se nossa consciência fosse uma cobra que vai se desfazendo das peles antigas à medida que cresce? O que nos leva (não a todos, é evidente) a abdicar deliberadamente de anseios tão caros nos nossos anos de formação, sem que exista qualquer pressão externa ou interna aparente? Esses questionamentos me ocorreram num fim de tarde do último final de semana, enquanto a chuva chicoteava meu rosto dentro do barco que me levava com minha mulher e minha filha à ilha de Boipeba. De certa forma, senti de volta uma inquietude típica daqueles velhos tempos ao estar naquele barquinho que a todo minuto nos lançava para fora dos assentos, deixando minha pequena atemorizada. E procurei descobrir em que estrada ou hotelzinho de quinta categoria abandonei o desejo de me lançar ao inesperado e ao fortuito. Não encontrei o que procurava, mas é certo que uma hora cansamos dos ônibus imundos, dos lanches sofríveis nas rodoviárias, da solidão que desfere golpes ligeiros como um gancho de direita desferido por Mike Tyson. E que, no extremo oposto do rol de prazeres, é gostoso demais deixar a vida passar num hotel confortável e luxuoso, com uma mesa de sinuca e um varandão feito sob medida para se degustar um charuto e beber um vinho. São prazeres que a maturidade e um mínimo de estabilidade financeira nos trazem, mas por outro lado são compensações insatisfatórias para a renúncia à aventura.
Não sei aonde quero chegar com essa conversa de boteco, mas talvez esteja ruminando o que ando lendo num livro interessante de Eduardo Giannetti, chamado Felicidade. Nele, o autor discorre, entre outras coisas (e com um grau de erudição que me joga para escanteio quase o tempo todo), sobre as escolhas que fazemos ao longo da vida e como elas nos levam – ou não – a um patamar, por mínimo que seja, de felicidade. É aí que entra o que tentei esboçar no início do texto: por que em determinado momento tudo aquilo que nos move de forma imperiosa simplesmente implode para dar lugar a satisfações radicalmente opostas? Existem várias camadas de felicidade? Elas se sobrepõem ou eliminam-se mutuamente? A verdade é que todas essas questões são insolúveis, sobretudo porque não existe sequer uma percepção única ou coletiva de felicidade. Giannetti vai mais longe: em que a modernidade (e com ela a tecnologia e o conforto) contribuiu – se contribuiu – para alcançarmos padrões mais elevados de realização pessoal?
Cada vez mais penso que caímos na armadilha do consumo maciço como ideal não apenas de felicidade, mas também (e talvez principalmente) de demonstração de poder e de superioridade frente aos semelhantes. Um carro novo ou uma viagem a Paris produzem felicidade? Sinceramente, acho que produzem generosos surtos de contentamento, mas até que ponto esse contentamento é genuíno, e não apenas um trunfo que usamos para nos diferenciarmos dos nossos vizinhos ou colegas de escritório e nos aproximarmos dos que estão no andar de cima? Fico me perguntando se no fim das contas não vai sobrar um vazio imenso nessa escalada rumo ao nada, já que a gente sabe que não vai sobrar nada mesmo. Estamos transmitindo o legado da nossa riqueza material ou da nossa miséria espiritual? Como posso saber? E quem pode? Sei apenas que uma aventura trivial como um passeio de barco por um lugar belíssimo e ainda primitivo faz a gente trazer de volta sensações e prazeres que deixam de nos acompanhar quando o hedonista que há em nós morre para dar lugar ao pragmático. Ou, me apropriando de uma parábola do livro de Giannetti, quando Epimeteu desaparece para que Prometeu possa reinar em paz.

domingo, 12 de abril de 2009

Admirável mundo novo?


Foram necessários menos de três meses para o mundo se dar conta de que o lema “yes, we can” se tornou mais do que uma declaração de intenções ou um slogan certeiro. Preparado, bem-intencionado e disposto a colocar em prática sua concepção de mundo, Barack Obama está pondo abaixo a crença que os Estados Unidos da América tinham de si mesmos: a de que estavam para a Terra assim como a Terra está para o Sistema Solar. Não que o país esteja abdicando deliberadamente do papel de maior potência econômica e militar mundial, nem vá deixar de uma hora para outra de interferir, inclusive militarmente, na vida política alheia. Mas, pela primeira vez, é possível entrever um princípio de alteridade nas ações do primeiro presidente negro da sua história. Seria esse, involuntariamente, um sinal do declínio do império americano? Improvável, embora se torne cada vez mais evidente que, quase duas décadas após o colapso soviético, a nação voltará partilhar a hegemonia sobre o planeta, desta vez com a China.
A verdade é que há algo em Obama que o diferencia dos antecessores, tornando ainda mais abissal a distância em relação ao último inquilino da Casa Branca, estulto, belicista, corrupto e indiferente às nossas mazelas ecológicas. Em suma: um idiota cheio de som e fúria significando nada. Em artigo publicado semana passada na Folha de S.Paulo, o colunista político Clóvis Rossi, que já esteve cara a cara com pelo menos meia dúzia de presidentes americanos, escreveu que Obama é o único de todos eles que “não exala o odor do império”. Ponto para ele. Mas de nada adiantaria esse jeitão amistoso de colega do ginásio se ele não viesse acompanhado de ações concretas, como a intervenção enérgica no sistema financeiro, que está pondo fim ao Estado mínimo e à farra inescrupulosa do capital especulativo, ou o compromisso com o Protocolo de Kyoto. Além, obviamente, do encerramento das atividades na Base de Guantánamo e a conseqüente investigação dos excessos (um eufemismo para torturas e assassinatos, inclusive de gente inocente) cometidos em solo cubano.
Seria Barack Obama a encarnação da mudança de paradigmas por que passa o mundo após a avassaladora crise econômica que teve nos EUA o seu principal estopim? Impossível responder sem a ajuda de um olhar retrospectivo, de uma luneta que enxergue o atual momento sob a ótica de um panorama futuro. Mas é fato que nunca antes – entre os grandes países capitalistas, é claro – se condenou com tanta veemência a liberdade que o sistema financeiro tinha de construir e destruir fortunas com base numa montanha de pó. Em outros tempos, esse discurso seria previamente desqualificado como coisa de esquerdistas, aquela gente chata que adora uma bandeira vermelha. Nunca antes, também, a preocupação com a devastação do meio ambiente adquiriu importância capital na alta esfera do poder mundial e no universo corporativo (e não estamos falando aqui do velho blá-blá-blá da responsabilidade social, cujo maior benefício para o planeta praticamente se resumia ao uso indiscriminado de papel reciclado). Hoje, a preservação do meio ambiente é antes de tudo uma questão econômica, e as empresas que se adaptarem mais cedo a essa realidade irão colher os louros no futuro. Mas o que Obama tem a ver com essa conversa?
Tudo. Porque, ao invés de ser uma encarnação dos novos tempos, como sugeri acima, Obama é na verdade fruto deles. Por mais que as sociedades atuais se caracterizem pela frivolidade a qualquer custo, buscando o consumo desenfreado como um moribundo busca a salvação, é possível vislumbrar um certo fastio com esse cenário, uma vontade ainda incipiente de dizer basta! (e aí o otimista que há em mim se sobrepõe ao cético). Se essa impressão corresponde à verdade, ainda não sei. Não sei sequer se estamos mesmo diante de uma mudança, por ínfima que seja. É aquela velha história de que a luz no fim do túnel pode ser um trem vindo na direção contrária para acabar de vez com a gente. Mas ao menos não temos mais George W. Bush e sua corja de panacas para atazanar nossas vidas, e isso faz uma diferença danada.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A voz de todos nós


Quantas perdas são necessárias para fazer uma pessoa sucumbir? Para algumas, uma perda basta, e nunca será pouco. No caso de Edith Piaf, foram necessárias perdas em cascata, desaparecimentos abruptos que em maior ou menor medida foram cruciais para que ela se tornasse a estrela de vidro que veio a ser. No deserto de sentimentos em que transitou durante a infância e a juventude, Piaf foi perdendo paulatinamente o pouco que lhe foi concedido: a prostituta que a amava como filha, a visão (depois recuperada), o homem que primeiro a tirou do submundo e a revestiu de dignidade, uma filha pequena, um grande amor, a saúde e por fim a vida. Não foi por acaso, portanto, que ao morrer, com quarenta anos e alguma coisa, ela parecia uma anciã.
Um fim melancólico, mas perfeitamente compatível com a sua trajetória. Piaf deixou a escória, mas a escória continuou dentro dela: nas suas canções de cabaré, no seu comportamento desregrado e autodestrutivo, no vício em morfina, na saúde precária típica de quem cresceu sem cuidado e proteção. Ao cabo de tudo, o saldo foi maciçamente negativo, embora o pouco que ganhou tenha sido o bastante para torná-la um ícone imperecível.
Tudo isso está no filme de Olivier Dahan, Piaf – Um Hino ao Amor, e nos olhos esbugalhados de Marion Cotillard, que exprimem e ao mesmo tempo ocultam um sofrimento imensurável. Quando a sucessão de privações enfim termina, nos versos dilacerados de Non, Je Ne Regrette Rien, aquele sofrimento também é nosso, e a voz de Piaf também é nossa voz.

sábado, 4 de abril de 2009

África ao pé do ouvido


É certo que a grande música dos séculos 17 a 19 frutificou na Europa, sobretudo na Áustria, Alemanha e Itália. O século 20 viu o eixo cultural, assim como o econômico e político, se deslocar do velho continente para o Novo Mundo, onde os descendentes de escravos – negros, pobres e em sua maioria analfabetos – deram forma ao jazz e também ao blues e ao soul, provando que estavam à frente do seu tempo e das atrocidades a que foram submetidos. E agora, neste início de século 21, onde germina a grande música do mundo? Cada vez mais me sinto seguro para afirmar que ela está na África. Sim, na África. Aquele continente enorme, lindo e esquecido, onde guerras civis pipocam feito espinhas no rosto de um adolescente. Onde a aids ainda não deixou de ser uma doença fatal, e mata mais do que a varíola nos velhos tempos. Onde uma população esfomeada e sem horizontes espera pela ajuda humanitária que quase nunca vem, enquanto serve de modelo vivo (ou nem tanto) para os fotógrafos adeptos da estética da fome.
Como pode haver música boa num lugar assim, você poderia perguntar. Bem, não sei a resposta. Sei apenas que a música simplesmente prolifera. E sei também que a África absolutamente miserável é, de certo modo, um estereótipo não necessariamente fiel aos fatos. Uma vez entrevistei José Eduardo Agualusa, proeminente escritor angolano (segue abaixo o bate-papo, vale a pena conhecer seus pensamentos e suas experiências), e ele disse que não adianta olhar a África como se fosse um lugar único e estático. “A África são muitos países, e completamente diferentes um do outro. Você tem países prósperos, viáveis, democráticos, como Botsuana, Senegal e Cabo Verde. Mas deles não se fala, porque as notícias são sempre sobre guerra. Nossos problemas têm a ver sobretudo com a não-democratização da África. A democracia está intimamente associada ao desenvolvimento”, teorizou.
Ou seja, nosso olhar ocidental e anglocêntrico se faz de míope quando se depara com a diversidade do continente. Lembro que Agualusa também falou da música africana, da qual é um entusiasta (ele tem até um programa de rádio lá em Angola), e quando eu citei Youssou N’Dour, Cesaria Évora e Miriam Makeba, ele retrucou: “Esses são os consagrados. Os melhores são os desconhecidos”. Ele estava certo. Quando sustento – provavelmente sem nenhuma base sólida, apenas com a avaliação superficial, porém sincera e sem vícios, de um sujeito incapaz de tocar um instrumento – que a grande música está na África, quero dizer que essa música oferece caminhos e soluções inventivos e inusitados que vão muito além dos excessos histriônicos da música pop norte-americana, do marasmo dos antigos ritmos caribenhos e do sem-rumo e vulgaridade dos brasileiros. Uma música impregnada de passado, mas vigorosamente sintonizada com o futuro.
Ao ouvir esses artistas de nomes insólitos, me embrenho num universo de sofisticação, lirismo e espontaneidade que me fascina a cada nova descoberta. Já falei, aqui no blog, sobre o pessoal da rumba congolesa, do disco The Kinshasa-Abjian Sessions. E agora, graças aos sites de compartilhamento, venho conhecendo outros artistas e sonoridades excepcionais. Um deles é o cantor e guitarrista Habib Koité, de Mali. Sua música – orgânica e melodicamente fértil – guarda tamanha sutileza que é impossível não se envolver emocionalmente com ela, apesar do canto incompreensível. Koité não é novo (nasceu em 1958), mas seu trabalho só começou a ganhar o mundo na última década. Outro é Andy Palácio, que, mesmo não sendo do continente (nasceu em Belize), mune-se de uma tessitura etérea para fazer a ponte entre seu berço africano e a influência caribenha, divulgando a cultura da comunidade Garifuna. E ainda tem o pessoal do Cool Crooners of Bulawayo, conjunto vocal precioso. Há muito mais, claro, e eu ainda estou apenas no começo da caminhada. Um atalho confiável para conhecer melhor esses sons são os discos da coleção Putumayo dedicados ao cancioneiro do continente, mesmo se tratando de coletâneas. O resto é pesquisar. A internet é um manancial: você só precisa de paciência, atenção, sensibilidade e um provedor decente para ter a África aos seus pés. Ou, melhor: aos seus ouvidos.

Arquivo - Entrevista: José Eduardo Agualusa


“O que me interessa é exercitar o absurdo”

O escritor angolano José Eduardo Agualusa dedicou boa parte da vida a conhecer os países e cidades de língua portuguesa espalhados pelo mundo. Esteve em Goa, Macau, Moçambique e Indonésia, entre outros lugares, e morou no Brasil e em Portugal. Toda essa peregrinação fez dele um profundo conhecedor das peculiaridades que envolvem o idioma lusitano e um homem estreitamente sintonizado com a realidade dos países africanos. A seguir, ele fala sobre o atual governo angolano, o qual define como “cleptocracia”, e discorre sobre as nuances da língua portuguesa.

Paulo Sales

P - Há muito de realismo fantástico em seu livro mais recente, O vendedor de passados, que tem como protagonista uma lagartixa? Qual a importância do gênero na sua obra?
JEA -
O realismo fantástico foi realmente importante para mim, mas mais do que ele, o que me interessa é um pouco exercitar o absurdo. Nós convivemos diariamente com o que nos países europeus e em outros países ocidentais se poderia considerar a presença da magia na realidade. A verdade é que, se eu quiser escrever um romance realista em Angola, fatalmente vou escrever um romance que poderá ser enquadrado como realismo mágico. Lidamos com o fantástico de uma forma muito natural.

P - O fantástico é uma característica africana?
JEA -
Sim. Nos países da Europa a racionalidade domina. A Igreja Católica, por exemplo, foi perdendo seu lado mágico. O que é um padre? Um padre é sobretudo um mago, deveria ser um homem capaz de realizar milagres. E a própria Igreja foi se afastando do milagre. Em África isso não aconteceu. Lá, o mistério e a magia estão presentes no cotidiano das pessoas. Vou dar um exemplo: você lê os jornais de Angola, e pode encontrar, no meio de uma série de notícias corriqueiras, uma história como esta: nosso correspondente na Barra do Quanza, explicava o jornal, conta a história de três crianças que desapareceram no rio. Ao fim de três dias, os pescadores mergulharam e encontraram as três crianças, vivas, no fundo do rio, sendo agarradas por um homem de longas barbas brancas. E aí pescaram as crianças e o velho, e guardaram o velho numa “cubata” (casa), e na manhã seguinte ele tinha desaparecido, sendo convicção dos habitantes do lugar que esse velho seria uma “quianda”, uma sereia. Essa notícia é apresentada de uma forma absolutamente natural em Angola.

P - Em entrevista ao Jornal do Brasil, você disse que há atualmente em Angola uma espécie de “cleptocracia”. Fale um pouco sobre o assunto.
JEA -
Angola é um país com muitos recursos e um dos principais produtores mundiais de petróleo e de diamantes. O problema é que, ao longo destes últimos anos, criou-se um sistema que vive de fato da exploração desses recursos. O que temos hoje é realmente uma cleptocracia, um sistema que vive do saque.

P - Isso é institucionalizado, ou seja, é promovido pelo próprio governo de Angola?
JEA -
Não sei se temos um governo. Temos ministros, mas alguns deles não têm sequer capacidade econômica para exercer sua função. É um governo de fachada, quem tem o poder total em Angola é o presidente da República, José Eduardo dos Santos.

P - Existe uma solução a longo prazo para Angola e para a África em geral?
JEA -
Não se deve olhar para a África como um todo. A África são muitos países, e completamente diferentes um do outro. Você tem países prósperos, viáveis, democráticos, como Botsuana, Senegal e Cabo Verde. Mas deles não se fala, porque as notícias são sempre sobre guerra. Nossos problemas têm a ver sobretudo com a não-democratização da África. A democracia está intimamente associada ao desenvolvimento. Portugal é uma prova disso, sendo hoje um país europeu moderno, o que justifica a ótima fase da literatura portuguesa. Você teve 30 anos de investimento sério e continuado na cultura, e os reflexos estão nos jovens escritores de Portugal, que são muito bons.

P - Cite alguns.
JEA -
Filipa Mello, Gonçalo Tavares, José Luis Peixoto, que ganhou o Prêmio Saramago há três anos. Quando você olha para trás e analisa a literatura portuguesa, não encontra concentrados num mesmo período de tempo um grupo tão grande de escritores tão bons. Temos António Lobo Antunes, José Saramago, Agustina Bessa Luís, e uma nova fornada tão boa quanto.

P - Você encontrou a língua portuguesa em lugares remotos do mundo, encravados na Ásia e na África. Conte um pouco dessas experiências.
JEA -
Estive em lugares remotos nas situações mais estranhas. Um exemplo é a Ilha das Flores, na Indonésia, que teve colonização portuguesa. Lá, existe uma procissão na semana santa que é famosa em toda a Ásia, você atravessa uma estrada enorme através da floresta, de noite, num silêncio extraordinário, compacto. E de repente as pessoas começam a rezar, e então subitamente você percebe que as pessoas estão a rezar em português. É uma coisa de arrepiar.

P - E elas sabem o significado da reza?
JEA -
Não, não sabem. O que é extraordinário na língua portuguesa é o fato de ela estar espalhada por geografias tão diversas e ter sido capaz de se afeiçoar a essas geografias. Os dialetos crioulos (falados nas colônias portuguesas) são depositários de palavras antigas. Não por acaso eles surgem normalmente nas ilhas, que são lugares onde aportam todas as coisas esquecidas do mundo.

P - Durante a Flip, escritores como Paul Auster e Martin Amis demonstraram certa inquietação com o momento sombrio que vivemos. E disseram que seus próximos romances refletiriam, de certa forma, esse período. Gostaria que você analisasse esse momento.
JEA -
Em primeiro lugar, eu não concordo com essas afirmações. Quando você olha para trás, vê um tempo de sombras. Quanto mais para trás você olha, piores eram os tempos. Há cem anos havia escravidão aqui no Brasil, e eu não conheço sistema mais indigno e injusto que a escravatura. E era aceito. Depois houve o Hitler. Hoje já não seria possível existir um Hitler, nem a escravatura. O mundo não permitiria. Nós melhoramos muito, não há dúvida que há uma evolução ética e moral. Os budistas dizem que a gente evolui em espiral: você recua, mas vai subindo sempre.

P - Que escritores serviram de base para o seu crescimento como escritor?
JEA -
Consigo identificar claramente, ao longo de minha vida, os meus momentos de assombro na literatura. Começou com Eça de Queiroz... Jorge Amado foi muito importante para mim, como para muita gente em África, porque nós descobrimos nele uma forma africana de escrever. Depois vieram os latino-americanos, Jorge Luis Borges, Gabriel García Márquez, alguma coisa do Mario Vargas Llosa. Meu mundo é o mundo afro-latino.

* Publicado originalmente no Correio da Bahia