quinta-feira, 29 de março de 2012

Aprendizado



Fui na semana passada a uma cerimônia de batismo. Um ritual simples e singelo, ministrado não por um padre ou pastor, mas por amigos dos pais da criança. Em um pequeno púlpito de frente para o mar, algumas pessoas se revezaram em discursos rápidos e sinceros, e em todas as mensagens percebia-se uma mesma tendência: a de considerar a criança uma bênção, uma dádiva, um acontecimento que veio para enriquecer espiritualmente a vida dos pais. Há um detalhe nessa história: o garotinho, hoje com um ano e meio, é um sobrevivente. Nasceu com uma doença congênita gravíssima e desde o seu nascimento passou por intervenções cirúrgicas invasivas e tratamentos pesados, que o mantiveram boa parte da sua curta existência dentro de hospitais. São perceptíveis os efeitos de todos esses dissabores sobre o seu corpo, mas de resto é uma criança que chora e sorri com a mesma graça pura de qualquer outro bebê.

Observei os pais. A exaustão estava esculpida em seus rostos, causada por 18 meses de sofrimento e abnegação, noites mal dormidas em desconfortáveis poltronas de hospital, esperanças acalentadas e em seguida descartadas. Mas não percebi em nenhum momento uma expressão de fastio, prostração ou desejo de jogar a toalha. Por mais difícil que possa parecer para um cético como eu, era evidente que eles encaravam toda aquela situação  que ainda está muito longe de acabar  de uma maneira estóica, como um aprendizado, uma via-crúcis necessária e até certo ponto almejada, vigorosamente alicerçada num amor profundo por sua cria. Não havia nem mesmo qualquer manifestação de auto-engano, quando as palavras exprimem o oposto do que diz a expressão facial.

Naquele momento, me pareceu claro que a espiritualidade exercia sobre o casal um efeito positivo. Acreditar no que está além do humano permite que se enxergue um aprendizado onde um ateu enxerga apenas dor e sofrimento. Crer, no caso deles, equivale a uma espécie de calor. Nada de fanatismo, ignorância ou dogmas engessados, apenas um sopro morno que os protege do frio voraz que é a nossa brutal e fugaz passagem pela Terra. Era como se os três estivessem cobertos por um manto de solidariedade e aconchego, um grande útero refratário a pensamentos ruins e confrontos interiores, desses que nos lançam contra o que há de mais impiedoso em nós. Acho que pela primeira vez, nessa minha longa trajetória agnóstica, eu me dei conta da capacidade que uma religião tem de atenuar nossas desgraças, aparar nosso desespero, fincar em nossa consciência uma lógica moral que explique por que fomos nós os escolhidos, e não a mãe que abandona o filho no mato. É a mesma lógica de Jó, personagem da Bíblia, aquele que é castigado ao extremo da miséria, das chagas e das perdas em profusão e mesmo assim não renega o seu ser supremo.

Obviamente, o batizado da semana passada não significou para mim uma epifania, uma conversão ao sagrado. Não me tornei de uma hora para outra um católico fervoroso, um espírita convicto ou um evangélico fanático. Não. Sei bem do meu frágil limite físico, da minha insignificância (e a de todos nós) diante de um universo tão vasto que não o apreendemos em sua totalidade. Apenas tateamos, tentando achar em uma nebulosa a bilhões de anos-luz de distância uma resposta para a nossa existência, nossa escalada em um único planeta habitável dentre milhões de astros áridos e inóspitos, quentes ou gelados ao extremo. As religiões nunca vão encontrar respostas para esses questionamentos e nem deveria ser esse o papel delas. Sua função é bem mais modesta, mas não menos valorosa: oferecer algumas xícaras de conforto e resignação bem quentes a quem se depara com um frio lancinante e solitário na alma.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Aquela coisa toda



Acabei de reler Este Lado do Paraíso, romance que batizou este blog. É como atracar em um cais seguro, tão familiar que sabemos exatamente onde ficam as pedras e armadilhas do caminho. Com ele, F. Scott Fitzgerald se tornou aos 24 anos uma celebridade, vendendo milhares de exemplares e moldando uma juventude que se espelhava naqueles jovens ricos, hedonistas e melancólicos personificados na figura de Amory Blaine. Este Lado do Paraíso fez de Fitzgerald a voz dos “anos loucos”, da geração perdida do entreguerras, recém-saída do front na Europa e prestes a enfrentar outro front ainda mais brutal na década seguinte. Uma geração que se esbaldou em festas intermináveis, patrocinadas por fortunas que pareciam também elas intermináveis, como um diamante do tamanho do Ritz. Mas, por outro lado, uma geração culta, que enveredava madrugadas adentro discutindo autores como Chesterton, Wilde e Tolstoi.

Hoje, penso o quanto é improvável que um romance como Este Lado do Paraíso seja capaz de atrair milhares de leitores, muito menos de moldar uma geração inteira. A literatura deixou de ser um meio de massa para se refugiar em trincheiras, sobreviver em guetos. A histeria (e de certo modo a angústia) juvenil está direcionada para outras mídias – o cinema, a música pop, os blogs, as redes sociais, os vídeos do You Tube – e os anseios e interesses estão cada vez mais fragmentados. Num panorama assim, dedicar-se a um ato que exige concentração, disciplina e introspecção, como ler um romance de mais de 300 páginas, soa no mínimo descabido.

Li outro dia um artigo falando sobre o livro A Geração Superficial, de Nicholas Carr, que defende que a internet está criando uma geração de leitores com pouca capacidade de concentração e compreensão de texto, mesmo entre pessoas acostumadas ao ato de ler. Isso me parece claro. Eu mesmo, enquanto estou absorto em um livro, às vezes me pego pensando em entrar na internet para ver se tem alguma atualização, seja no meu blog, no Facebook ou nos portais de notícias. Não estou lamentando tudo isso, é só uma constatação – embora de certa forma essa mudança me entristeça. Nascido em 1970, eu fui moldado em outra era geológica, herdeira direta dos tempos de Fitzgerald e de Este Lado do Paraíso. No meu paleolítico particular, parte significativa (ou não, posso estar redondamente enganado) da juventude cultuava livros que atravessavam gerações. Havia, de certo modo, tempo suficiente para que uma obra nascesse, crescesse e arregimentasse adeptos fiéis, para só então decair e morrer – quando morria.

Cresci lendo e ouvindo falar de obras que poderiam virar do avesso a minha visão de mundo, me elevar a um novo plano intelectual e, quem sabe, espiritual. Eram meus faróis. Não foram poucas as vezes em que varei noites discutindo entusiasmado com amigos os romances que tínhamos acabado de ler. Ou outras em que comemorei achados preciosos em livrarias, sebos e feiras livres nas calçadas. Já fiquei até sem dinheiro para comer durante uma viagem, depois de torrar uma pequena fortuna numa edição raríssima de Pra Cima com a Viga, Moçada, de Salinger, em uma livraria de Florianópolis. E já vibrei de satisfação ao receber, de um vendedor de livros usados no Bixiga, em São Paulo, exemplares em bom estado de Factotum (Bukowski) e Os Subterrâneos (Kerouac), esgotados havia muitos anos. Hoje eles são facilmente encontrados até em postos de combustível, em edições de bolso novinhas, mas naquele tempo, ah, naquele tempo...

Entendo que esse entusiasmo que marcou a minha juventude e a de meus amigos tende a morrer – se é que não já morreu. Entendo que a literatura tenha sido desbancada pelo cinema e pela música como fonte primordial de cultura e entretenimento. Mas ainda me intriga o fato de que muitas pessoas, mais novas ou não, simplesmente não leem sequer jornais. É claro que o velho hábito matinal de folhear notícias tornou-se em parte obsoleto com a internet. Mas onde encontrar informações que avancem para além do lide? Vou além: onde encontrar o fascínio que um romance como Este Lado do Paraíso provoca em nosso córtex cerebral?

Como um velho senil, sinto falta do meu passado, da minha geração, por mais apática e individualista que tenha sido. Sinto também uma nostalgia irrefreável da geração que não conheci, aquela que há quase 100 anos se deixou enlevar pelo livro de Fitzgerald, e que ele definiu com tanta sensibilidade nos derradeiros parágrafos do seu livro: “O espírito do passado meditava sobre uma nova geração, aquela juventude eleita que vinha de um mundo perturbado, impuro, que ainda se nutria romanticamente dos equívocos e sonhos quase esquecidos dos poetas e estadistas. Ali estava uma nova geração, bradando velhos gritos, aprendendo velhas crenças, através de um sonho que se prolongava por longas noites e dias, destinada finalmente a expor-se àquele turbilhão cinza, sujo, a fim de seguir o amor e o orgulho; uma nova geração, mais dedicada do que a anterior ao temor da pobreza e ao culto do sucesso; uma geração que cresceu para descobrir que todos os deuses morreram, todas as guerras haviam sido combatidas, toda fé no homem estava abalada...”

sexta-feira, 16 de março de 2012

Purgação



Nunca fiquei tanto tempo sem escrever no blog. Os temas se aproximam e escapam de mim sem que esboce disposição para aprisioná-los num texto. São temas recorrentes, gastos, e me sinto cansado de falar sobre eles. O mundo vai nos abatendo aos poucos, vencendo pelo cansaço e pelas sucessivas estocadas em nossas costas, como um toureiro paciente. Leio sobre episódios terríveis e incomodamente banais e não consigo refletir sobre eles. O que dizer, por exemplo, da menina marroquina de 16 anos que se matou por não suportar os maus-tratos do homem que a estuprou e que, beneficiado pelas leis do país, escapou da prisão casando-se com ela? Ou do garoto de 12 anos que pôs fim à vida por não suportar a violência excessiva e rotineira dos colegas de escola? Ou da criança de 9 anos morta nos braços do pai durante um tiroteio em São Paulo, enquanto esperava o transporte escolar? O que dizer da brutalidade cotidiana que nos apavora e nos desnorteia, como touros exaustos à espera do abate?

Por sorte somos animais duros, traquejados, e queremos continuar vivos apesar de tudo. Afinal, existem momentos que fazem a vida valer a pena. Eu mesmo me pego extasiado ao contemplar o sol sumir no mar ao lado de minha filha, admirando encabulado e apaixonado suas mudanças de fisionomia e comportamento, deixando aos poucos de ser criança para viver uma adolescência dourada. Seria o suficiente para viver em plenitude. Mas infelizmente não estamos imunes à vida, como diz o personagem de George Clooney em Os Descendentes, ao comentar o fato de que, por morar no Havaí, ele teoricamente habitaria um paraíso refratário ao sofrimento e à perda. Não, não estamos imunes à vida, ou melhor, não estamos imunes à violenta opressão da realidade. Não há invólucro capaz de nos tornar invulneráveis, e é isso o que mais tememos.  

Ao escrever, é como se eu me purgasse da dor dos outros, mitigando o temor de um dia também ser vítima da dor. Mesmo um texto como este, sem pé nem cabeça, me ajuda nesse processo de penitência. De certa forma, invejo quem segue seu curso imune à desgraça alheia. Pois para que serve a minha compaixão, a minha tristeza solidária, se ela não tem qualquer serventia? Não sei o que fazer. Absorvo o mundo à minha volta como um mata-borrão, uma esponja, e me sinto impotente e aparvalhado diante de massacres como aquele do soldado americano no Afeganistão ou do genocídio sistemático promovido pelo ditador sírio contra seu povo. Não me reconheço no meu país ou nas pessoas que o habitam, assim como não me reconheço no meu tempo. E, por mais que me refugiasse em um lugar remoto, o mundo me alcançaria.

É o que acontece com Bucky Cantor, o personagem atormentado pela pólio de Nêmesis, livro mais recente de Philip Roth. Cantor era uma espécie de zelador de um pátio para crianças no bairro judeu de Newark, quando, no verão de 1944, elas começaram a morrer em sequência, por conta de uma epidemia de paralisia infantil. Moído pela culpa (por irracionalmente se considerar o responsável pela epidemia), ele parte rumo a uma colônia de férias para crianças bem distante de Newark, totalmente isolada, onde a pólio não chegou. Mas o mundo acaba por alcançar Cantor: logo após a sua chegada, um surto da doença começa a fazer estrago na colônia, incluindo entre suas vítimas ele próprio. De certa forma, Roth defende que não existe lógica na escolha dos que vão sofrer, a não ser a lógica perversa do acaso, tão aleatória e cruel como uma bala perdida.