sexta-feira, 25 de maio de 2012

A Bahia tinha um jeito




Na semana passada, ajudei a criar uma campanha publicitária para o Dia dos Namorados, que tem como tema o amor de Jorge Amado e Zélia Gattai. Uma relação de 56 anos, personificada na cumplicidade e no companheirismo mútuos, que fizeram o casal se dedicar com afinco a sorver o século 20, tendo como ingredientes fundamentais o romance, a política e sobretudo a literatura. Tenho um carinho especial pela vida de Jorge e Zélia, mesmo não tendo sido um leitor freqüente dos livros dele nem um admirador dos livros dela. O que me atrai nessa trajetória é o que ela simboliza: um tempo em que a arte e a cultura eram cultivados com dedicação no quintal de nossas casas. Um tempo em que a Bahia representava a vanguarda, mas também a tradição.

Soube que a Casa do Rio Vermelho, onde o casal viveu por décadas, começa a dar sinais de desamparo. Em qualquer lugar do mundo seria um museu concorridíssimo, uma atração turística nos moldes das casas de Pablo Neruda no Chile ou mesmo da Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre. Mas preferimos o desdém, o menosprezo, como escrevi no primeiro texto que fiz para este blog, em dezembro de 2008. Nesse mesmo texto, escrevi também que estive na casa duas vezes, a primeira quando Jorge ainda era vivo, embora senil, e a segunda após sua morte, quando encontrei uma Zélia Gattai fragilizada, a me revelar que só esperava a hora de reencontrar o homem que amava. Hoje, o que restou de ambos está enterrado no jardim da casa, ao lado do banco onde costumavam sentar.

O silêncio em torno de Jorge e Zélia diz muito sobre o que a Bahia se tornou. O próprio conceito de baianidade se corrompeu, reduzindo-se a um estado de espírito permanentemente alterado por uma suposta alegria movida sabe-se lá a quê. Vivemos, nesta segunda década do século 21, a total desintegração do que fomos na segunda metade do século 20: um estado efervescente, para o qual migravam intelectuais, artistas plásticos e músicos de ponta e de onde saíam movimentos culturais de relevância nacional, como o Ciclo Baiano de Cinema, e artistas mais relevantes ainda, como Caetano Veloso, Tom Zé, Calasans Neto, Glauber Rocha. Havia algo que motivava tudo isso, e certamente não eram as águas do Porto da Barra ou o dendê do Recôncavo. Havia sobretudo a disseminação natural de conhecimento, que levava à formação de um público culto, ansioso por transformar um estado até então provinciano em um pólo cosmopolita.

Mas onde foi parar tudo isso? Onde foi parar o universo tropical opulento que era a substância vital dos romances de Jorge Amado? Ou o recanto idílico que motivou Caetano a cantar, apropriando-se dos versos de Dorival Caymmi: "Tudo, tudo na Bahia faz a gente querer bem. A Bahia tem um jeito"? Não faço a menor idéia. Sou apenas um espectador amedrontado assistindo à ruína do lugar onde nasci. Um lugar que agoniza em estultice e mansidão, como se sofresse uma espécie de Alzheimer coletivo, na mais completa ignorância do que um dia foi. 

terça-feira, 15 de maio de 2012

Os segredos do abismo




Gostaria de escrever alguma coisa sobre Carlos Fuentes, agora que ele acaba de ir embora. Mas nunca li Carlos Fuentes. Ele se vai sem que eu jamais tenha manifestado o interesse, em algum momento da minha vida, de ler uma de suas obras, mesmo que um livro seu, A Morte de Artemio Cruz, habite há um bom tempo a estante de minha casa, numa edição vagabunda que, ao folhear agora, percebo estar parcialmente comida por cupins. Nunca li Fuentes, assim como nunca li Octavio Paz, e só me salvo da absoluta ignorância em relação à literatura mexicana por ter me embrenhado um dia no imaginário denso e enevoado de Juan Rulfo. O que sei de Fuentes é o que quase todos sabem. Que foi um intelectual ativo, de opiniões relevantes e sintonizado com o seu tempo, embora nos últimos anos declarasse em entrevistas que não reconhecia o mundo ao seu redor.

Mais não sei e, portanto, não continuarei falando do autor mexicano, e sim de tudo aquilo que ele simboliza: cultura, revelações e conhecimento, essas coisinhas maçantes que vivem ocupando nossos cérebros com sucessivos pontos de interrogação. Adquirir conhecimento é mais ou menos como fabricar abismos. Quanto mais ele nos envolve, mais nos sentimos na mais completa ignorância do que nos falta conhecer. São como portas que se abrem eternamente para outras portas, e quanto mais prosseguimos, mais deixamos para trás a obscuridade, a zona de conforto da ignorância. Certezas preconcebidas são aos poucos substituídas por dúvidas irremovíveis. Afinal, a dúvida é uma das matérias-primas primordiais da evolução humana.

Às vezes, quando estou lendo no meu gabinete, desvio os olhos das páginas e me deparo com todos aqueles volumes nas prateleiras da parede oposta, com sua aparência indevassável. Nelas estão os autores que amo, os que admiro sem muito afeto, os que me decepcionaram e aqueles por conquistar – entre os quais está Carlos Fuentes. Sei que, entre esses últimos, há livros que não vou ler nunca, assim como há outros que ainda irão me inundar de fascínio um dia. O que faço é prosseguir, embora muitas vezes vencido pelo cansaço, outras pela incompreensão.

Tudo isso me faz lembrar do que Eliane Brum escreveu recentemente em seu blog: “De certo modo, toda arte é um monumento ao nosso desespero diante da morte. Como se tudo o que foi criado até hoje documentasse, no fundo, sempre o mesmo desejo impossível de permanência. É como se todo museu ou biblioteca fosse, na verdade, uma prova pungente e grandiosa de nosso fracasso”. Pois o processo de conhecimento (e de autoconhecimento) significa justamente se lançar contra o abismo da nossa finitude e retirar algo de lá. Assim fazem os criadores e assim fazemos nós, os que se aprofundam na obra desses criadores. Mas há, também, o prazer da descoberta, a deliciosa sensação de que algo muito valoroso e único se descortina para nós, como um segredo muito antigo ou uma visão, ainda que fugaz, do paraíso. Só isso já vale as dúvidas, os questionamentos e a insustentável solidão que o conhecimento nos traz. 

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Noite que segue






A insônia é território da angústia. Um território opaco e espesso, onde vigília e inconsciência se irmanam e se desconectam, formando um todo aterrador. Um estado de espírito alterado, como se constituído de vontade própria, que vara a madrugada lançando centelhas no sono por vir. Uma neblina sem ternura ou aconchego, que avança na cinza das horas. No quarto quente, com o ar-condicionado quebrado, a temperatura do corpo é glacial perto da temperatura da mente, uma brasa vigorosa movida a passado.

A insônia desarruma os desvãos da alma. Desaloja episódios cuidadosamente esquecidos, remexe no arquivo morto de paixões cremadas e convertidas em cinzas, impressões enevoadas pelo pouco uso, cidades há muito visitadas e das quais guardamos só rostos e esquinas. Versos lidos há pouco ou lidos há décadas. Papéis imaginários. Um desassossego me invade e me impede de ler o livro de Pessoa na mesa de cabeceira, fuçar a vida alheia nas redes sociais ou rever pela sétima vez a sequência final de um filme qualquer na tevê a cabo. Um desassossego silencia o meu sono.

Olho para a insônia e ela me olha de volta, desolada, como se me pedisse desculpas. Deixo a cama e derramo estas palavras sem lucidez na tela. Olho meus livros, meus discos, meus retratos. Espelham o que sou, ou imagino ser. Noite que segue. Sinto falta do papel na máquina de escrever, sinto falta de sonhos. Minha mente anda muito ocupada por lembranças, atravancada pela persistência da memória.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Menu de maldades




Gosto de ficar por dentro das novidades da alta gastronomia. Saber, por exemplo, o que Alex Atala anda fazendo no D.O.M. para que o restaurante tenha alcançado o quarto lugar entre os melhores do mundo, segundo a revista Restaurant. Ou quem sabe tentar entender o uso da química nas criações de Ferran Adrià, chef responsável por subverter vários conceitos culinários no extinto El Bulli, que durante anos freqüentou o topo da mesma lista. Ou, ainda, conhecer o que servem os restaurantes três estrelas de Paris, como o Epicure ou o Guy Savoy.

É um universo ao qual pouquíssimos abonados (entre os quais não me incluo) têm acesso, onde são servidas preciosidades inusitadas, como ostras com tutano, ouriço-do-mar com musse de ovo, bochecha de porco cozida em especiarias com batata ou rim de cordeiro com abacaxi e purê de cará com priprioca. Um mundo à parte, que revela o extremo do bom-gosto e da sofisticação alcançados pelo homem, após milênios caçando porcos selvagens com lanças e comendo com as mãos em frente a fogueiras. Mas é um mundo que não esconde o nosso outro lado: o dos predadores cotidianos que atingem, na alimentação de massa, requintes de crueldade.

Quando um ojo de bife chega à nossa mesa, tostadinho por fora e sangrento por dentro, aguçamos nossos sensores pré-históricos e em seguida nos desconectamos da origem dessa carne, de qual elemento ela faz parte. Quem viu o filme Amarelo Manga sabe bem como os bois são abatidos e depois retalhados, para depois virarem picanhas, fraldinhas ou alcatras. Já escrevi há algum tempo aqui no blog, refletindo sobre um texto de Ian McEwan, que nossas compaixões são seletivas. Temos pena do animal que morre, mas não nos culpamos por degustá-lo, seja grelhado, ao molho ou reduzido a porções minimalistas, como vemos nos restaurantes de alta gastronomia. É como se, aos nossos olhos famintos, os ojos de bife e seus congêneres dessem em árvores.

Com relação aos frangos, a situação não é muito melhor: eles passam toda a sua curta existência andando em círculos num ambiente superpovoado e fortemente iluminado, para que não repousem e comam mais, ficando maiores e prontos para o abate em menos tempo. Mas nada supera o que fazemos com os caranguejos: eles são jogados em água fervente, e muitos espirram sua urina ao tocarem a água, o mais próximo que podem chegar de um grito de dor. É bem possível que todo esse sofrimento chegue de alguma forma até nós. Li em algum lugar que animais confinados vivem sob estresse contínuo e liberam substâncias prejudiciais ao nosso organismo. Uma vingança involuntária, talvez.

Partindo de tudo isso, a pergunta que faço é: precisamos causar tanto sofrimento? Se prestarmos atenção, fazemos com os animais algo muito semelhante ao que os nazistas faziam com seus prisioneiros nos campos de concentração. Vale ressaltar, antes que me acusem de hipócrita, que sou um apreciador voraz de carnes, peixes e mariscos, e que não pretendo abdicar desse prazer. Então por que levanto essas questões? Bem, talvez porque elas me incomodem de alguma maneira. Lastimo a morte de um animal na rua, o gato ou cachorro vira-lata que se vê cara a cara com o pára-choque de um carro. Deploro o que se faz com grandes mamíferos, como baleias, gorilas e rinocerontes. Portanto, não poderia pensar diferente em relação aos pobres animais criados em cativeiro, cuja existência tem como único objetivo nos alimentar.

O fato é que, ao matarmos para comer, deixamos às mostras o quanto ainda estamos no início da nossa evolução como espécie. Trata-se apenas de mais uma manifestação do nosso primitivismo, como guerrear em estádios ou morrer no trânsito. Por mais que sejamos capazes de conceber pratos refinadíssimos em restaurantes não menos requintados, somos acima de tudo bichos selvagens e agressivos buscando desesperadamente a perpetuação da espécie. Em pleno século 21, ainda uma aurora para a humanidade, levamos nossos filhotes famintos para lanchar hambúrgueres no Mc Donald's. Igualzinho às leoas, que matam zebras para dar de comer aos seus.