terça-feira, 27 de agosto de 2013

Pássaros pintados




Faz muito tempo que li O Pássaro Pintado. Mas até hoje não esqueço do sentimento de repulsa que algumas passagens do romance de Jerzy Kosinski provocaram em mim. Em alguns momentos, lembro, precisava até desviar os olhos da página diante de descrições tão vívidas de crueldade: infanticídios, corpos desmembrados, sobrevivência a qualquer custo. O livro narra as desventuras de um garoto cigano desgarrado dos pais, perambulando e se escondendo nas florestas geladas da Polônia durante a Segunda Guerra Mundial. A perseguição do exército alemão a qualquer tez distinta à brancura ariana era implacável, mas o livro tratava, em sua essência, de algo ainda mais amplo e devastador que a insânia nazista: a crueldade inata do ser humano. Uma característica tão natural em nós quanto o fato de sermos bípedes ou podermos nos expressar com palavras.

O título do livro, por exemplo, faz referência a um trecho particularmente brutal: um garoto capturava um passarinho e o pintava com cores berrantes, tornando-o irreconhecível aos demais da sua espécie. Em seguida, o soltava. O prazer do garoto era observar o animal ir de encontro aos seus semelhantes e ser atacado. Incapaz de se explicar ou sequer compreender por que não o reconheciam, o pássaro pintado era bicado até a morte. Essa parábola é perfeitamente aplicável ao que se observa hoje em muitas partes do mundo, com uma diferença (e aí se concentra toda a ironia cruel de Kosinski): aqui não nos referimos a animais irracionais – pelo menos não no sentido convencional do termo.

Fico me perguntando se, ao fazer uso de armas químicas de destruição em massa contra seu próprio povo, o ditador sírio Bashar al-Assad não reconheceu naquelas centenas de crianças mortas seres da sua espécie. Que tipo de daltonismo seletivo é capaz de provocar tamanha distorção do real, transformando um homem comum, de feições banais e quase obtusas, em um genocida? Penso comigo: não há remorso ou sofrimento íntimo quando se ordena e executa um ato tão bárbaro? São perguntas tão tolas e ingênuas que me sinto como o bom selvagem de Rousseau sendo aos poucos corrompido pela sociedade que me rodeia. O homem é um bicho mau, me lembra William Burroughs em O Gato por Dentro, complementando o que Kosinski deixa bem claro em O Pássaro Pintado, com seu niilismo sem meias-medidas. Enfim, não existem bons selvagens, embora eu não tenha convicção plena de que somos intrinsecamente maus  acho até que não somos. De todo modo, me parece inquestionável que a passagem da humanidade pela Terra é em grande parte assentada sobre o alicerce da barbárie. Assim cresceram os impérios, desde os assírios até os sírios.

Mas agora me sobressalto com outra dúvida: se os pássaros somos nós, pintados ou não, quem é o garoto neste nosso mundo real de dentistas calcinados e meninos com  olhos arrancados? Quem é o titereiro, o Sabbath, o Chaplin dançando com o globo? Quem será esse desgraçado dono dessa zorra toda, perguntaria Raul Seixas? O fato é que não há ninguém. Estamos sozinhos como uma criança cigana perdida no mundo, aprendendo a se virar com o que tem numa terra devastada e desconfiando de quem se aproxima. O horror, o horror. Pode parecer – e é – uma visão desoladora, que revela um profundo ceticismo. Mas que outros sentimentos poderiam nos percorrer quando nos deparamos com aqueles corpos em série de quem quase não viveu? Ao contrário do livro de Kosinski, aquelas cenas não são fruto de uma mente criadora, e é inútil desviar os olhos.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Testemunhas




Observo os objetos que compõem o meu gabinete. E me pergunto: o que será deles, caso sobrevivam ao meu fim. Ficarão guardados em uma caixa de sapatos? Depositados em um canto escondido no futuro escritório de minha filha, como lembrança do pai que a amou tanto? Serão doados, jogados fora, convertidos em poeira e desimportância? Não faço ideia. Sei apenas que toda essa memorabilia representa quase nada se despida do valor afetivo que o seu dono destina a cada peça. São singelos ícones de uma linha do tempo imprecisa, que no decorrer das décadas receberam sucessivas camadas de sentimento e saudade a cada olhar ou a cada reminiscência.

Meio empoeirados, atulhando as minhas prateleiras ou enfeitando a minha bancada, eles permanecem ali, como cúmplices de crimes inexistentes: o delicado anjo de porcelana que pertenceu ao meu avô paterno; o São Paulo dado por minha mãe para me proteger de tempos difíceis ou doenças graves; a calçadeira de osso que foi de meu pai e que sempre gostei de usar. Há mais: o machadinho de pedra-sabão adquirido em Ouro Preto, no qual se lê a inscrição “A felicidade está contida no vento frio das auto-estradas”, de autoria de um certo Paradise Duluoz; o simpático índio inca de madeira comprado no Chile; o rosto de expressão entre irônica e carrancuda que me remete a um dia particularmente agradável em Montmartre.

Quanto deve valer, por exemplo, a pedra bruta com cristais incrustados que adorna a prateleira dos autores de R a S? Para os outros, apenas um mineral sólido e sem serventia, mas para mim um presente precioso, dado por uma garota mineira por quem me apaixonei quando estive em Curvelo. Do mesmo modo, que significado especial pode ter o velho par de sapatinhos azuis de bebê, bem gasto, que fica ao lado da caixa de charutos? Nenhum, senão pelo fato de que me fazem lembrar dos primeiros anos de minha filha, e de como eu amava vê-la correndo com aqueles sapatinhos.

Como todos esses objetos, também os livros, discos, fotografias, pôsteres, poemas dispersos, originais nunca publicados e velhas correspondências devem sobreviver a mim, bem como as centenas de rolhas da minha coleção de bebum assumido. Reunidos neste pequeno quarto, eles de alguma forma refazem em silêncio o percurso sinuoso de minha passagem pelo mundo. Daqui a 100 anos, alguém vai abrir as páginas de algum desses livros? Vai descobrir naqueles originais guardados um talento inaudito? Vai se emocionar com as cartas que falam de anseios malogrados ou sentimentos represados? Para todas as perguntas, a resposta é: provavelmente não. Tenho consciência da minha insignificância. Sei que essas quinquilharias que hoje me rodeiam serão só testemunhas da cinza das décadas, do oblívio inapelável ao qual serei lançado um dia.